A leveza de uma criação artística, segundo a concepção de Italo Calvino, reside na sua habilidade em lidar com o peso do viver sem sucumbir a ele. Obras leves não são aquelas que evitam assuntos, dilemas ou temáticas graves, mas que adotam uma perspectiva por meio da qual é possível encarar a realidade sem fatalismos paralisantes, justapondo melancolia e humor. Diante das pesadas complicações da realidade, a leveza, de acordo com Calvino, é a capacidade de se esquivar de visões de mundo que se esgotam na catástrofe (seja ela qual for), como se não existissem alternativas, outras vias.

Este me parece ser um possível caminho para acessar o espetáculo Todas as Coisas Maravilhosas, solo do ator Kiko Mascarenhas, dirigido por Fernando Philbert. O texto é uma tradução da obra inglesa Every Brilliant Thing, escrita por Duncan Macmillan e Jonny Denahoe em 2013. Na trama, estamos diante das aflições de alguém que vê a própria mãe tentar repetidamente o suicídio. Da infância à fase adulta, a personagem, de alguma maneira, exprime a angústia de saber que alguém tão amado está diante deste grande e insondável penhasco. A fim de convencê-la a não cometer tal ato, a personagem inventa uma lista de experiências e sensações geradoras de ânimo, vigor, prazer, convidando sua mãe, e com ela todo o público, a refletir sobre as coisas que fazem nossas vidas valerem a pena, ou seja, tudo aquilo que nos mantém ainda em movimento.

A atuação de Kiko prima por uma delicadeza que, desde o momento em que adentramos o teatro, se mostra calorosa, como se ele estivesse nos recebendo em sua casa. O ator instaura suavemente uma atmosfera a um só tempo intimista e confortável, cativando o seu público, trazendo-o para mais perto da história que ele irá contar. Para fazer isso, a dramaturgia mobiliza uma série de singelos dispositivos a fim de convocar a participação da audiência, convidando espectadores e espectadoras a assumirem, em momentos pontuais, algumas personagens do enredo. Neste processo, Kiko é singularmente cuidadoso, não expondo ninguém a quaisquer constrangimentos; antes pelo contrário, esta peça se torna um lugar de aconchego.

É importante ter em mente que as intervenções do público não remodelam as linhas principais do enredo. Cada pessoa nos dá um pormenor, um colorido singular, nuances mais ou menos expansivas dentro de uma estrutura que não irá se desfazer. A fluida tradução de Diego Teza segue, de parte a parte, o mesmo entrecho do texto original. Isto não impede Mascarenhas de demonstrar tanto um vibrante carisma na lida com seus eventuais colaboradores, quanto uma ágil disponibilidade para a improvisação, aproveitando toda oportunidade para um gracejo inédito ou um gesto imprevisto. Interessante é notar como, em muitas passagens, as configurações do espetáculo fazem com que qualquer registro de atuação desta ou daquela espectadora produza sentidos novos, seja ela mais agitada e falante, seja ela mais introspectiva e reservada. Cada particularidade é incorporada como elemento dramatúrgico.

Para mim tal fato ficou ainda mais evidente durante um dos trechos essenciais de toda a estória: o diálogo imaginário entre a criança e o pai no interior do veículo. Irrequieto e curioso, o menino de sete anos pergunta ao adulto o porquê de tudo, questionando as causas, os motivos, e os significados deste mundo tão estranho. O tsunami de porquês, pouco a pouco, acentua, por um lado, o inconformismo de quem não está satisfeito com as certezas já dadas, por outro lado, uma angústia diante daqueles dilemas que nos respondem com mais perguntas, a exemplo da tentativa de suicídio da mãe. Na sessão a que assisti, o rapaz convidado a encarnar o papel do filho demonstrava uma visível timidez. Contudo, o fiapo de voz que se ouvia dele, bem como o seu moderado nervosismo conferiram sentidos interessantes para aquela cena, enfatizando a dificuldade que é verbalizar aqueles porquês. Além disso, o narrador-personagem conta-nos ao longo do espetáculo que a comunicação com o pai sempre fora truncada. Esta cena é igualmente destacável por outra razão: é talvez o único momento em que o protagonista principia a esboçar a dúvida cortante, enigmática, irrespondível em alguma medida; afinal, por que a mãe tentou dar cabo da própria vida? No restante do entrecho, ele não volta a se questionar a respeito das possíveis motivações dela. Aquilo que está deprimindo-a tão fortemente parece, para ele, importar menos do que expandir ao infinito os itens de sua incrível lista motivacional. Ao cabo, a figura materna vai sumindo, esmaecendo, tornando-se cada vez mais distante.

A vocação intimista da peça exige uma espacialidade calcada na proximidade entre o ator e seu público. No Teatro Zé Maria, a plateia estava disposta em uma semi-arena, por assim dizer, ocupando a área frontal e as duas laterais do palco. Esta arquitetura, por si só, estimula algo decisivo para esta encenação: todos os espectadores se veem, trocam olhares, afetando-se, gradualmente, pelas emoções alheias. Os vínculos afetivos são também estreitados pela intensidade da luz que, permanecendo a mesma em todo o espaço, do início ao fim do espetáculo, dilui as fronteiras usualmente intransponíveis entre o palco e a plateia. O figurino altamente casual, concebido por Tereza Nabuco, também contribui para deixar a imagem do ator mais cotidiana, sem qualquer traço grandiloquente. Por tudo isso, a aparente espontaneidade da peça está sustentada por artifícios cênicos cuidadosamente pensados. Aí reside muita beleza teatral, se levarmos em consideração que o arranjo de elementos singelos pode, em conjunto, formular uma intensa experiência coletiva a partir do momento em que ambas as partes estão realmente dispostas a compartilhar algo de si. Esta é a viga-mestra desta peça.

A meu ver, as fragilidades e os limites do espetáculo residem sobretudo na maneira pela qual a dramaturgia encara as complexidades da saúde mental e do suicídio, adotando uma perspectiva por vezes idealizada demais, romântica demais. Vejamos.

Todas as Coisas Maravilhosas apresenta um narrador que, na primeira pessoa, compartilha seus infortúnios e alegrias, divide conosco experiências e sentimentos íntimos, dá a ver publicamente o seu mundo interno. A personagem instaura não somente uma forte relação com suas leitoras/interlocutoras, mas firma um pacto, ou uma cumplicidade que almeja adesão, torcida e apoio. Aqui estamos diante de um narrador-personagem que nos oferece o mundo a partir de sua ótica; tudo está filtrado pelo seu olhar a partir do qual conheceremos seu universo relacional, afetivo, psicológico. A propósito, esta é, para mim, a principal conexão entre Todas as coisas maravilhosas e Os Sofrimentos do Jovem Werther. Explico-me: o romance epistolar de Goethe, no enredo, cruza a vida universitária do protagonista que, por sua vez, impressionou-se ao saber que o renomado livro causou uma onda de suicídios na Europa setecentista. Para além desta semelhança (a presença do autoextermínio), na dramaturgia e na obra de Goethe, os dois narradores exprimem suas dores e agonias mais profundas, enlaçando seus leitores/espectadores para dentro de seus corações revoltos.

Nesse sentido, há em Todas as Coisas Maravilhosas dois aspectos que lhe são fundamentais: busca gerar, na plateia, uma identificação com as qualidades e as desventuras da personagem e consequentemente instiga um transbordamento catártico por meio da sentimentalidade. Lembremos que a crise se desenrola principalmente no interior da instituição familiar. Se por um lado, esta construção dramatúrgica aprofunda e dilata uma individualidade angustiada, ou seja, as turbulências internas, subjetivas do narrador-personagem, por outro lado ignora totalmente qualquer reflexão mais complexa acerca dos condicionamentos sociais, econômicos e raciais que circundam a vida daquela família narrada. Também o suicídio é cortado por elementos de ordem sociopolítica. Uma informação poderá evidenciar melhor o meu argumento: no Brasil, o risco de suicídio entre jovens negros é 45% maior do que entre jovens brancos, segundo pesquisa do Ministério da Saúde em parceria com a Organização Mundial da Saúde. Será preciso perguntar o porquê disso? Não é possível negar que a encenação narra a vida de um homem branco, heterossexual, criado em uma família de classe média (a mãe já fora para o Egito; eles possuem uma vasta coleção de discos e uma vitrola – no texto original é um piano; o narrador acessa facilmente a universidade etc).

Estou a exigir da trama discussões que, de fato, inexistem no seu horizonte e nos seus objetivos? Creio que não. Todavia, parece-me impossível desconsiderar que a abordagem dramatúrgica, centrada completamente na dimensão íntima e doméstica, revela uma perspectiva muito acanhada para pensar as significações, as implicações e os dilemas sociológicos e éticos do suicídio. A certa altura, Kiko profere um conselho para aqueles e aquelas que estão a cogitar o autoextermínio: “Não faça isso. As coisas vão melhorar”. Ainda que bem intencionado, tal discurso, um tanto leviano, tende a simplificar imensamente as inúmeras e variáveis circunstâncias que rondam o ato de tirar a própria vida, prometendo algo (uma solução mágica) que ele não pode definitivamente dar. Um conselho genérico como esse é cabível para todos os casos? Por fim, este tipo de pensamento olha tão somente para o indivíduo, sua reação ou força de vontade, ignorando as dimensões sociais, políticas e contextuais que circundam a vida de quem está a sofrer.

O que há de mais palpitante em Todas as coisas maravilhosas não é decerto suas considerações acerca do suicídio, mas a sua sensível aposta no jogo cênico, no qual as interações doces, naquela ambiência acolhedora, projetam o teatro como uma experiência que radicalmente se funda na relação; é importante que ambas as partes desejem atravessar algo conjuntamente. Entre encontros e desencontros, sou afetado.

Ficha técnica:

Ator: Kiko Mascarenhas
Autor: Duncan Macmillan e Joe Donahue
Tradução e adaptação: Diego Teza
Direção: Fernando Philbert
Preparação de Ator: Ana Luiza Folly
Iluminador: Vilmar Olos
Figurinista: Tereza Nabuco
Concepção Cenográfica e Adereços: Luciane Nicolino e Mauro Vicente Ferreira
Direção de Arte: Luciane Nicolino
Programação Visual/Design Gráfico: Vento Estúdio
Fotos, Arte e Vídeos: Gab Lara
Operação de Luz e Som: Daniel Marques
Direção de Produção: Cristiana Lara Resende
Co-produção: Ufa! Produções Artísticas Ltda
Produção e Realização: KM ProCult.
Companhia: @todasascoisastestro

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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