Depois de estrear e sair premiado no Cine PE, o longa Nem Toda História de Amor Acaba em Morte, dirigido por Bruno Costa, venceu o prêmio de melhor filme pelo voto popular no Festival RIO LGBTQIA+. Protagonizado por Gabriela Grigolom, primeira atriz surda a liderar o elenco de um longa brasileiro, o filme aborda, com sensibilidade e humor ácido, as complexidades do amor, da maternidade e da convivência.

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Ao lado de Chiris Gomes e Octávio Camargo — também protagonistas — Grigolom interpreta Lola, uma mãe solo, negra e surda que se apaixona por uma professora. A história se passa quase toda dentro de uma casa real em Curitiba, espaço de criação e encontro de artistas. Além do elenco, a equipe também contou com intérprete de Libras e atores surdos, reforçando o compromisso com uma produção inclusiva.

O cineasta Bruno Costa falou com o Fringe sobre o processo de criação, os entraves do cinema independente e a importância de dar protagonismo a personagens e profissionais historicamente invisibilizados. “Existe uma nouvelle vague surda na cultura brasileira. E estava na minha frente o tempo todo, mas eu não via”, afirma.

Entrevista com Bruno Costa

Bruno Costa recebe o prêmio de melhor filme pelo voto popular no Festival RIO LGBTQIA+. Foto: José Barra

Vamos começar com a pergunta inescapável: como surgiu a ideia bastante original deste filme?
Essa é clássica. Neste projeto, tudo girou em torno da casa onde a maior parte do filme foi rodada — a casa onde moravam os artistas Octávio Camargo e Chiris Gomes, no bairro Cristo Rei, em Curitiba.
Mas não é apenas a casa deles. É um espaço de encontro, de convivência, de agitação cultural, de criação, de composição, de apresentações. Muita coisa aconteceu — e ainda acontece — ali. A gênese do projeto veio justamente dessa casa.

Eu estava trabalhando na produção de outros projetos e levei alguns diretores para conhecer a casa. Eles diziam que gostavam, mas sempre comentavam: “Não é bem isso. Vamos procurar mais”. E eu, que achava a casa incrível por vários motivos, ficava meio indignado.
Aí pensei alto: vou escrever um roteiro pra filmar nessa casa. A Chiris falou: “Pô, então escreve e chama a gente pra atuar!”. E aí me deu um estalo: “Tá bom. Provocaram o cara certo”.

Porque era isso: essa casa, que eu acho sensacional, e esse casal de grandes artistas da cidade, envolvidos em várias áreas — composição, música, teatro. O Octávio, inclusive, com experiências passadas em arte conceitual.
Então fui pra casa e comecei a rascunhar uma história que envolvesse um casal e a casa. Como manter os personagens dentro da casa? Comecei a pensar numa situação que os obrigasse a permanecer ali. Já tinha o Octávio e a Chiris, que se ofereceram pra atuar. Aí pensei: pronto, tenho um casal e uma casa. Acho que daqui pode sair um filme.

Você falou dessas idas e vindas. O projeto começou em 2020, as filmagens principais foram em 2022, mas o filme só chegou agora. Por quê?
Por muitas razões. Razões políticas, principalmente. O dinheiro ficou preso mesmo com o projeto já aprovado. Foi uma época em que começaram a barrar todos os projetos. Eles mandavam mil diligências, e a gente respondia com toda a documentação. Chegou uma hora que não havia mais o que pedir — e aí simplesmente pararam de responder. O dinheiro estava na conta, mas bloqueado. Isso foi entre 2020 e 2021.
A outra razão foi financeira. Quando a gente finalmente conseguiu liberar o valor via mandado de segurança, na Justiça mesmo, ele já estava desvalorizado. Tudo tinha aumentado nesse período. Então, optamos por investir todo o recurso disponível na filmagem — pra pagar melhor as pessoas e garantir uma estrutura sólida.

Com o orçamento que tínhamos, conseguimos garantir a filmagem, a montagem e a edição. Todo o restante da pós — cor, som, música — a gente correu atrás depois, com outro edital de complementação.

Além disso, tem a própria lógica do cinema independente. A gente acaba usando essas intempéries como tempo de maturação, sabe? Reescrevi o roteiro muitas vezes. Mostrava, mandava pra alguém ler, recebia feedbacks, conversava com autores que eu admirava. Então, apesar da demora, o processo nunca ficou parado. Sempre usei esse tempo pra reescrever, rever referências, buscar filmes com alguma similaridade.
Foi só em 2022 que conseguimos mesmo o dinheiro, num momento de trégua da pandemia. Depois ainda veio uma nova onda, que atrapalhou um pouco, mas no fim a gente conseguiu filmar.

Voltando ao filme, como o argumento inicial evoluiu até o resultado final?
A ideia inicial era sobre um casal que se separa, mas continua morando junto. Tudo pra não precisarem sair da casa. Tinha essa pegada meio “filme de confinamento”. E o curioso é que essa ideia surgiu há mais de 10 anos, muito antes da pandemia.
Mas eu achava que ainda faltava uma trama forte. Só o fato de um casal separado continuar morando junto não gerava conflito suficiente. Então pensei: “Ok, alguém vai se envolver com outra pessoa”. Mas quem? Aí surgiu a ideia de ela começar a se relacionar com outra mulher.

E, como dividem a casa, essa nova namorada começa a frequentar o lugar. Pensei: isso vai gerar várias situações cômicas, tensas, conflitos. A ex com a atual dentro de casa. Algo totalmente possível de acontecer — e que acontece, né?
Rascunhei essa trama e fui contar pro pessoal. Nem tinha escrito ainda, só falei: “É um casal que se separa, continua morando junto, até que ela começa a namorar uma mulher, mais jovem, que passa a frequentar a casa”.
Aí a Chiris, mais uma vez, me provocou: “E se ela fosse surda?”.

Foi mais um estalo?
Foi sim. Mas, confesso, na hora fiquei em choque. Eu não tinha nenhum contato com a comunidade surda. Não conhecia ninguém surdo. Só que a Chiris já era muito envolvida com essa comunidade.
Voltei pra casa com essa provocação e passei três dias pensando nisso. Alternava entre: “Cara, isso é genial!” e “Putz, será que é demais?”. Porque era algo completamente fora do meu universo. No final do terceiro dia, pensei: “Não. Não é doideira. É genial. Aí está o filme. Aí está o diferencial”.

Você passou a estudar mais esse universo?
Totalmente. A partir desse momento, comecei a perceber que havia pessoas surdas em todos os lugares. É tipo quando você compra um Fusca verde e começa a ver Fuscas verdes em toda esquina. Foi isso.
Percebi que existe uma nouvelle vague surda na cultura brasileira. Está na arte, está no zeitgeist.
Quando mergulhei nesse universo, comecei a notar — na rua, num passeio — pessoas se sinalizando, conversando em Libras. E aquilo sempre esteve ali, na minha frente. Mas eu usava uma viseira.

Mas o filme trata de outras questões também, certo?
Sim. Tem o tema da mulher de 50 anos que tenta se reinventar, correr atrás de um sonho. Ela termina o casamento, perde o emprego. A relação dela estava estagnada, e isso transbordou para outras áreas da vida. Ela deixou de fotografar, de fazer arte. Mas, ao se apaixonar de novo, ela desperta.
Tem a questão da mãe solo também. O filme fala de muita coisa que não está escancarada, mas está ali: questões sensíveis à comunidade surda, mães solo, pessoas pretas… Só que sem ser panfletário.

Apesar dos temas sensíveis, o filme é uma comédia?
As comédias que eu mais gosto têm humor ácido, irônico. A ironia vem das contradições. Os personagens escorregam, fazem coisas questionáveis.
O personagem do Otávio/Miguel é o contraponto cômico. Ele representa o “esquerdomacho”, o cara desconstruído — até a mulher dele sair com outra mulher. Aí mexe no calo.

Muitos filmes tentam parecer que poderiam se passar em qualquer lugar. O seu, não.
Não mesmo. É um filme totalmente curitibano, com atores curitibanos, com sotaque curitibano. Filmamos no Bondinho, na Rua XV — sem medo dos cartões-postais, mas com outro olhar.

E o título do filme veio de uma música?
Sim. A trilha gira em torno da melodia “Choro Suicida”, do Otávio com o Alexandre França. O nome é longo, mas enigmático — amor e morte na mesma frase.

Você mudou muito entre seu filme de estreia e “Mirador” e esse filme?
Com certeza. Entre Mirador e esse filme aconteceu muita coisa. Inclusive a experiência em Cidade de Deus, que me contaminou — no bom sentido — como artista. Mas acho que toda obra reflete quem você era naquele momento.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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