Texto publicado originalmente na Revista Continente
Toda língua tem seus poetas. Na Língua Brasileira de Sinais (Libras), a atriz Gabriela Grigolom é uma delas — e o Brasil poderá conhecê-la a partir da próxima sexta-feira (13), quando acontece a estreia nacional do filme Nem toda história de amor acaba em morte, na Mostra Competitiva do Cine PE 2025.
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Em Curitiba, a Nega Bi, como também é chamada, ficou famosa por dar seu recado em rodas de slam no centro e na periferia da cidade. Foi numa dessas tertúlias que o diretor Bruno Costa e o produtor Gil Baroni a viram. A partir de então, a ideia de um filme que tinham na cabeça se transformou.
O argumento original do cineasta era usar a casa onde se passa boa parte do filme — um lugar com história no bairro curitibano do Cristo Rei — como cenário de uma comédia de erros sobre um casal que se separa, mas que as circunstâncias obrigam a continuar convivendo sob o mesmo teto.
O conflito principal se daria com a chegada de uma terceira pessoa no lar desfeito: uma namorada mais jovem da protagonista feminina. Quando Costa apresentou a ideia aos atores — o também músico e dramaturgo Octavio Camargo e a atriz e musicista Chiris Gomes — ela perguntou: “E se a namorada fosse surda?”
“Confesso que fiquei meio em choque. Na época, não tinha contato com a comunidade surda. Passei uns três dias pensando nisso. Alternava entre ‘isso é genial’ e ‘isso não faz sentido’”, lembra Costa.
A conclusão deste dilema será vista pela primeira vez na tela do cinema do Teatro do Parque, a partir das 19h desta sexta-feira (13), véspera do centenário do escritor Dalton Trevisan, o “vampiro de Curitiba”.
“Era o diferencial. Se fosse só um casal que se separa e ela se envolve com uma mulher, teria certo frescor, mas ainda assim seria só mais uma comédia dramática. Abriu-se um universo e o roteiro virou um trabalho de pesquisa para entender a língua e a vida de uma pessoa surda em todas as suas dimensões: ‘Agora temos um filme’, pensei”, disse Costa.
Faz sentido que Gabriela Grigolom seja a primeira artista a estrelar um longa com protagonista surda no circuito dos festivais brasileiros, pois ela também foi a primeira atriz surda a conseguir a DRT, o registro profissional obrigatório para artistas no Brasil. Faz sentido que o filme esteja no Cine PE, pois o festival é célebre por promover a diversidade de gêneros e formatos da produção audiovisual nacional.
“É minha primeira experiência. Cresci numa casa com influência artística, mas nunca imaginei fazer cinema”, admite Gabriela. “A história tem ficção, mas também um pouco de realidade, porque a arte surda existe. O roteiro incorporou muitas coisas da minha vida e dos outros atores, e todos contribuímos nessa construção.”
Uma das coisas que a ficção trouxe da vida da atriz foi sua filha Sophia, que com doces quatro anos rouba muitas das cenas. A outra foi o grupo de teatro do qual Nega Bi faz parte e que, na mesma época das filmagens, estava montando a peça Surdo, logo existo, cujos ensaios e reuniões de elenco foram incorporados nas filmagens.
ARTE SURDA
“Não foi por acaso, faz parte do zeitgeist. Quando você começa a pesquisar, percebe que a arte surda está por toda parte. Brinco que é como quando você compra um Fusca verde e depois vê Fuscas verdes em todo lugar. Estava tudo ali, mas eu não via. E isso acontece com muitos grupos sub-representados”, disse o cineasta.
Neste novo tempo da arte surda brasileira, que pode ter como marco temporal o ano de e 2010, quando uma lei federal regulamentou a profissão do tradutor e intérprete de Libras, podemos incluir exemplos como a peça Língua, cuja dramaturgia bilíngue — em Libras e português — foi vencedora do último Prêmio Shell de Teatro.
Ou a Mostra Surda do Festival de Curitiba, com dezenas de peças, incluindo um verdão do Canto I da Ilíada, de Homero, em Libras. A peça dirigida por Octavio Camargo, ator do filme, faz parte de um projeto que busca encenar todo o rito homérico há mais de 25 anos com atores de todo o Brasil.
O protagonista é Jonatas Medeiros, um dos fundadores da Fluindo Libras, grupo de tradutores e ouvintes que promove Libras e difunde a arte surda e foi assistente de direção de Costa. Coube a ele fazer com que o set de filmagem do longa com mais de 30 figurantes surdos e sete atores surdos se tornasse um lugar sem barreiras: a claquete, por exemplo, foi substituída por um sinal.
Mas, além desse debate, o filme traz outras questões sociais importantes, tudo com a roupagem de uma comédia que Billy Wilder talvez fizesse se morasse em Curitiba durante a pandemia.
“O filme nasceu da vontade de retratar personagens que vivem à margem das convenções sociais, levando em conta o papel do cinema como força de inclusão. Quisemos romper com estereótipos da teledramaturgia brasileira sobre pessoas com deficiência, mostrando uma relação lésbica em confronto com a masculinidade frágil, usando o humor irônico para dar vida a histórias e personagens reais e possíveis”, afirma Bruno Costa.
Este é o segundo longa de Costa, que, nos últimos dois anos, foi diretor da série Cidade de Deus para a plataforma MAX — projeto que dá continuidade à história dos personagens do longa-metragem indicado ao Oscar em 2004.
Seu longa de estreia, o drama Mirador, ganhou prêmios nacionais e internacionais e tinha como protagonista o ator pernambucano de Condado, Edilson Silva, que está no elenco do premiado O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho.
USINA DE CANÇÕES
Quem assiste à Nem toda história de amor acaba em morte também pode ter acesso a uma amostra do sotaque, da cor e da paisagem da capital paranaense, que são fotografados como elementos dramáticos — e de um certo modo de vida em diferentes classes sociais da “terra dos pinheirais”.
O título do filme faz referência ao primeiro verso da canção Choro suicida, parceria de Octavio Camargo com o poeta Alexandre França:
“Nem toda história de amor acaba em morte, mas
Em Curitiba estes números assustam, pois
Quando o inverno chega por aqui
Os suicidas de amor se multiplicam por dois”
Uma das muitas canções criadas na usina de compositores que é a casa de Octavio — a de número 608, da Rua Atílio Bório, a mesma onde se passa boa parte do filme —, que tem sido, em Curitiba, nas últimas décadas, um ponto de encontro de uma geração de poetas e compositores em outro fio da teia invisível deste pequeno grande filme que chega à luz quase quatro anos depois de ter sido filmado.
De partida para ver a estreia no Recife, Nega Bi reflete sobre o papel histórico de sua personagem, mas sem perder a ternura poética. “Nossa realidade de pessoa é mostrada de forma sutil e doce: alegrias, tristezas, perrengues e as diversas formas de amor que também acontecem conosco sem ser panfletário”, disse.
“Eu quero que o filme converse muito com a comunidade surda, que ela possa se ver na tela, mas também com os aliados da comunidade ouvinte, que vão ter chance de aprender uma nova forma de entender arte e poesia.”