Por volta dos meus 16 anos, meu filme favorito era Garota Interrompida (2000) e meu livro de cabeceira era Assim falou Zaratustra (escrito entre 1883 e 1885) de Friedrich Nietzsche. Não sei explicar por que a temática da loucura instiga tanto o imaginário adolescente. Aposto que nem mesmo Nietzsche, em seus mais intensos delírios, poderia jamais calcular o alcance de sua produção, a diversidade etária e geográfica de seu público – muito embora o filósofo já afirmasse ser um “pensador extemporâneo”, um pensador para além de seu tempo.
Nietzsche foi um filólogo, filósofo, aspirante a compositor e amante das artes que desafiava as convenções de sua época acerca da estética, da moral, dos valores vigentes, da crença no cientificismo, em Deus ou na verdade. Há quem diga que sua loucura, e consequente internação em um hospital psiquiátrico, se deva ao peso de suas ideias brilhantes (narrativa profética-heróica), mas há quem afirme que se tratava apenas de uma demência causada por neurossífilis. Como nunca houve uma autópsia de seu corpo, podemos ficar com a versão que nos for mais conveniente. Eu, por exemplo, escolho a versão romântica do filósofo que enlouqueceu por estar muito à frente de seu tempo, sonhando com deuses que dançavam abraçado a um cavalo açoitado no centro de Turim.
Já Dimis, roteirista e diretor de “O fantasma de Friedrich”, escolheu uma versão fantasmagórica do filósofo para construir sua ópera pop punk. Afinal, se dizem que o caboclo de Michael Jackson foi parar num terreiro na Bahia, por que o espírito de Nietzsche não poderia vir a ser encosto em Curitiba? No mais novo musical de Dimis e Enzo Veiga, Nietzsche (Ranieri Gonzalez) é um espírito invocado por Alana (Laura Binder) – uma jovem de 17 anos que, após a morte de seu pai em um acidente de carro, tem a vida interrompida por uma internação. A partir de seu contato com o livro Assim falou Zaratustra, presente de seu pai – um professor de filosofia –, Alana conjura o espírito de Nietzsche e aprende um pouco mais com o filósofo sobre liberdade, enfrentamento do medo e do caos.
Eu lia Assim falou Zaratustra como quem lia Cinderella: Zaratustra desce da montanha, vira camelo, velho, criança, e nenhuma dessas metáforas me comunicava nada de muito profundo, mas alguma coisa me agradava naquele texto. Me apegava às imagens de estrelas cintilantes que nasciam do caos, e acredito que, na minha incompreensão de tudo aquilo, alguma coisa atravessava e se fazia entender. Curioso ver como precisamente a mesma frase serve de mote da protagonista na sua sede por autoconhecimento.
Nietzsche acompanha Alana na busca por sua irmã perdida na instituição psiquiátrica Hospital das Graças. Além da companhia do filósofo, a jovem também conta com seu antigo urso de pelúcia, Adolfo (Sávio Malheiros), e quatro adolescentes também internados na mesma instituição: Lídia (Mo Amaral), uma paciente com síndrome de Tourette; Sofia/ Samuel (Laís Cristina), diagnosticada/o com borderline e bipolaridade (cada metade da personagem tem um nome e respectivamente um diagnóstico); Christopher (Emanuel Bill), um menino homossexual cujo pai patologiza sua sexualidade e, aparentemente, espera da internação uma cura gay; e Abel (Henrique Augusto), inicialmente preso a uma camisa de força, sem descrição do seu diagnóstico.
Abordando temas como as crises generalizadas de ansiedade, altos índices de depressão, tik toktização da juventude, busca por engajamento, falta de pertencimento e desejo de aceitação, o grupo de jovens luta para retomar o controle de seu tempo. Aparentemente no papel de antagonistas dos autodeterminados “adolescentes insurgentes”, temos o corpo de enfermaria, composto por três profissionais: Lucy Fernanda (Amanda Nicolau Schubert), Elisângela (Helen Tormina) e Edi (Filipe Dassie). Com foco, força, fé e fármacos, os enfermeiros buscam conter fugas e rebeliões por parte dos jovens, operando uma aliança entre discurso religioso salvacionista e medicalização.
Investindo em uma paleta verde e rosa fluorescente, preto e branco, o musical segue, do figuro à iluminação, a moda pop punk das bandas de rock estadunidenses dos anos 2010. Aparentemente, o eterno retorno, conceito de Nietzsche, também se aplica à moda e aos gêneros musicais, tendo em vista seu caráter cíclico – a peça foi uma verdadeira imersão nas referências que eu tinha aos 16 anos. O musical se insere na curadoria de peças do Festival de Curitiba fazendo aceno a um público mais jovem, mas não se restringe a essa faixa etária. Com uma produção musical e cenográfica digna da Broadway, a peça conta com músicas autorais de Dimis e Enzo Veiga – dupla que vem movimentando a cena teatral curitibana, com ênfase na produção de musicais –, banda tocando ao vivo e um elenco selecionado durante um processo de audição que contou com mais de 300 candidatos. Dentre os atores e atrizes que compõem o elenco, quatro artistas (Laura Binder, Mo Amaral, Emanuel Bill e Helen Tormina) possuem vínculos com o centro de artes especializado em musicais denominado muito oportunamente “Projeto Broadway”, e Helen é uma das professoras do projeto.
O musical – dividido em dois atos – nos mantém fisgados ao longo de seus 150 minutos graças aos seus plots twists à Clube da Luta (1999), seus arranjos musicais e o acabamento visual. Desde a primeira cena, já somos situados no cenário hospitalar – fundo de todo o espetáculo –, revezando apenas entre as alas do hospital e a sala de arquivos. A sala de arquivos se mantém presente, em segundo plano atrás de uma tela transparente, durante todo o espetáculo e divide esse plano com a banda. Repleta de caixas, a sala de arquivos opera como uma memória distante, mas sempre presente, onde ficam os prontuários dos pacientes – inclusive o da irmã de Alana –, o livro Assim falou Zaratustra, sombras e fantasmas. Por vezes, os fantasmas deixam o segundo plano e tomam o primeiro plano do palco. Orquestrados pela figura de Nietzsche, os espíritos parecem menos assombrosos e chegam a se engajar em debates com Alana, como por exemplo, questionando o que é a liberdade. Quanto menos medo Alana sente das sombras, mais assustador seu ursinho, Adolfo, lhe parece.
Com ambas as coxias escondidas por trás de divisórias brancas que vão do chão ao teto do teatro, com portas delimitadas por uma faixa de “risco”, todas as operações de trocas de cenários e entradas e saídas de cena são realizadas sem que isso se torne visível ao público, uma vez que as portas e divisórias delimitam uma espécie de corredor hospitalar. É a presença ou a ausência das camas em cena, no primeiro plano, que irá distinguir o dormitório das demais alas. Essas entradas e saídas das camas são realizadas sempre com as cortinas fechadas. Mas, a não ser pelo intervalo, essas cortinas não provocam nenhuma interrupção no fluxo da cena, pois os atores descem à plateia ou performam uma cena fora das cortinas, nos mantendo sempre hiperestimulados e sem termos como atentar para os demais artifícios que estão sendo operados.
No sentido técnico, o espetáculo é primoroso e, se eu tivesse 16 anos e nenhum letramento em saúde mental, estaria completamente dentro. Mas eu não tenho 16 anos e não posso deixar de comentar as fragilidades do enredo no que concerne à saúde mental – tema que se apresenta como central para a peça. Os diagnósticos desses jovens se tornam secundários em relação às doenças e aos sintomas da sua geração, como ansiedade, vício em celular, obsessão por engajamento e ânsia por pertencimento. É certo que os diagnósticos que esses adolescentes já possuem podem muito bem se agravar quando somados às demais questões típicas dessa geração, mas não é essa a questão. O problema é que ter síndrome de Tourette ou ser borderline vão se configurando como traços da personalidade das personagens e, então, os sintomas dessas patologias são convertidos em alívios cômicos. O espetáculo sobrecarregado de efeitos e o excesso de estímulos não favorece o aprofundamento crítico das questões colocadas. Perde-se, assim, a oportunidade de trazer representatividade e visibilidade para essas questões – através dessas personagens – na medida em que elas vão se tornando caricatas e risíveis. Verdade seja dita, levando em consideração a forma como Garota Interrompida toca na questão da loucura – inclusive tendo uma protagonista borderline –, talvez nem com 16 anos eu tivesse topado essa dimensão da peça.
Se, no início, o musical parece se basear num debate antimanicomial e se colocar contra a medicalização da vida – incorrendo até mesmo na vilanização dos enfermeiros, cumpridores dessas ordens –, no segundo ato esse aspecto da narrativa perde força. Os enfermeiros são humanizados, o que é um saldo positivo. Eles não têm nenhum interesse particular em conter os adolescentes insurgentes, estão apenas tentando manter seus empregos e sobreviver aos plantões, medicalizando-se eles mesmos. O discurso, então, passa a ser sobre confiar no processo, atravessar o caos e ver a sua estrela cintilar. A insurgência não foi em vão e ela culmina na revisão do tratamento oferecido a esses adolescentes, que fazem as pazes com os funcionários da instituição. A mensagem sobre procurar ajuda e confiar nos profissionais é transmitida de forma concisa em uma linguagem jovem e acessível, mas não respeita as particularidades de cada um ali.
Durante o primeiro ato, Abel afirma que a única forma de sair daquele hospital é fugindo, pois “depois que você entra, ninguém te libera. Eles ganham dinheiro assim”. Na sequência, após o intervalo entre atos, vamos recebendo indícios de que talvez existam motivos mais profundos para que esses jovens estejam sendo mantidos sob os cuidados da instituição – e que transcendem o “pague para entrar, reze para sair” –, mas esses motivos não concernem a todos os adolescentes, como por exemplo, o menino gay. Se no próprio solo ele afirma não ter cura – até porque homossexualidade não é doença –, será que ele realmente deveria ser mantido ali “até o final, até o final” como cantam em coro na última música?
Ficha técnica
Direção Geral e Dramaturgia: Dimis; Direção Musical e Composições Originais: Enzo Veiga; Letras: Dimis e Enzo Veiga; Elenco: Ranieri Gonzalez, Sávio Malheiros, Laura Binder, Henrique Augusto, Mo Amaral, Laís Cristina, Emanuel Bill, Amanda Nicolau Schubert, Helen Tormina e Filipe Dassie. Banda: Enzo Veiga (Teclado), Guga Batera (Bateria), Duda Cesar (Guitarra), Victor Lehmann (Baixo e Guitarra); Direção de Movimento e Ensaiador: Val Salles; Desenho e Programação de Luz: Lucas Amado; Desenho e Operação de Luz: Anry Aider; Sonorização: Chico Santarosa; Microfonista: Helena Sofia; Cenografia: Leo Gegembauer; Cenotecnia: Fabiano Hoffmann; Figurino: Leo Gegembauer; Costureira: Sandra Canônico; Boneco Adolfo Grande: Ateliê Miniart; Fantoches e Boneco Adolfo Pequeno: Mestre Bonequeira Tadica Veiga; Identidade Visual: Amorim; Fotos: Gutyerrez; Assistência de Produção: Mariana S Pinheiro e Vini Heimann; Produção Executiva: Jac Alber; Direção de Produção: Sávio Malheiros; Realização: Bife Seco (@bifeseco).