Quando olho para a geração dos artistas nascidos nos anos 1940, vejo uma versão brasileira da “era axial”, a definição do pensador alemão Karl Jaspers para uma coincidência cósmica, daquelas que acontecem um milênio sim e outro não.
Entre os anos 800 a.C. e 200 a.C., surgiram, ao mesmo tempo, em lugares diferentes, os pensamentos fundadores das grandes tradições espirituais e filosóficas que moldaram as civilizações até hoje.
Na China, Confúcio e Lao Tsé formularam seus princípios éticos e políticos. Na Índia, Sidarta Gautama, o “príncipe iluminado”, o Buda, falava sobre renascimento, karma e libertação espiritual.
Na Pérsia, Zaratustra reformulou o mazdeísmo na oposição entre o bem e o mal e inventou o diabo. Na Grécia, surgiram os filósofos ocidentais, como Sócrates, Platão e Aristóteles. Em Israel, os profetas hebreus lançaram as bases do monoteísmo.
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O paralelo possível é com o Brasil da “era dos Festivais”, um país do qual vamos nos despedindo poeticamente em momentos como o show de Gilberto Gil que tive a sorte de ver ontem em Curitiba, na Arena da Baixada — espaço que me é muito caro e que frequento semanalmente desde 1979.
Nascido em 1942, Gil surgiu na Bahia com Caetano, Gal, Bethânia, Tom Zé. Mas Raul Seixas e Moraes Moreira também surgiram do mesmo chão, no mesmo tempo.
E têm mais ou menos a idade artistas que nasceram no Rio, como Jorge Ben, Erasmo Carlos, Tim Maia, Cassiano, Hyldon, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro e Chico Buarque.
Chico era chamado de “paulista” no Rio por ter crescido em São Paulo, de onde vieram Rita Lee, os Mutantes, Walter Franco e Itamar Assumpção, que foi o último da turma a vir à luz, em 1949.
Mas ele cresceu aqui no Paraná, onde nasceu Paulo Leminski, que foi contemporâneo de Sérgio Sampaio, que nasceu no Espírito Santo, como o rei dessa geração, Roberto, que cresceu na Zona Norte do Rio.
Pois nesses nomes e em suas circunstâncias estão contempladas as raízes da MPB (o que quer que ela seja), do rock e do reggae à brasileira, da música experimental das vanguardas 70tistas, da maravilhosa música black brasileira, da reinvenção do samba e da música pop nacional.
Uma era axial de gente bronzeada e cheia de valor.
E Gil pode não ser o melhor compositor de sua geração — às vezes é, sim, as vezes não —, mas ele é a figura mais bonita e luminosamente afável, e talvez a que tenha mais pontos de contato com todos os outros desta teia.
E Gil resolveu sair de cena numa última batucada. De forma bem pensada, bem produzida e patrocinada — uma despedida elegante para o artista e que vai garantir paz e conforto para o chefe de um clã.
E que, no fundo, foi um recado final da autoridade espiritual tradicional que ele tem sido nas últimas seis décadas. Tudo isso num show tão arrepiantemente bonito quanto uma noite fria de inverno em Curitiba.
Uma noite, aliás, parecida com a da primeira vez que o vi, em 1993, praticamente inaugurando a Pedreira, que leva o nome de seu amigo — que foi lembrado por Gil ontem de um jeito muito amoroso, quando cantou a sensacional canção “Estrela”, feita para o nascimento da caçula do poeta polaco.
Achei, aliás, muito apropriado a forma como Gil reconheceu a força do reggae por aqui, quando começou a apresentar suas pedradas do ritmo jamaicano que ele e seu mano Caetano introduziram no Brasil, depois de terem visto, exilados e fascinados em Londres, o pessoal de Kingston fazendo música na Portobello Road.
Como aconteceu com muita coisa, a partir de Gil o Brasil assimilou o reggae e adaptou às condições locais, criando uma forma única — que é diferente em Curitiba, no Maranhão ou em Trancoso, mas tudo veio do tronco do mesmo baobá da música brasileira que é Gilberto Gil.
E ele convidou atriz curitibana Marjorie Estiano para cantar sua versão “Não Chores, Mais”, com os espirais da arte do fundo dando sentido para tudo:
Aos 83 anos, vestido com uma bata branca, Gil é e sempre foi metamorfose: a serenidade exultante, o guitar-hero tradicionalista, o avô andrógino, a revolução calma. A carta mais alta do baralho dos artistas de sua geração pelo que ensina em exemplo e poesia. A gente só precisa ver o luar para entender.
O roteiro do show Tempo Rei é centrado no seu zênite criativo, que durou de 1965 a 1984 — período de muitas fases: do tropicalista ao desbunde do “quanto mais purpurina, melhor”, dos reggaes aos momentos em que fez parte do movimento pan-africanista mundial, representando o Brasil como o griô que sempre vai ser.
A parte mais bonita foi quando Gil pegou seu violão e partiu para cima de “Esotérico”, que define sua geração e todas as questões de espiritualidade e modo de viver e “Drão”, a melhor e mais generosa canção de desamor já escrita.
Quando assumia a posição de band leader, no centro do palco, Gil ficava mais ou menos em cima da marca do pênalti do gol da Buenos Aires — território onde aconteceram muitas coisas nos últimos 100 anos, para o bem e para o mal.
Pois o lugar se “ressignificou” — como dizem os textos acadêmicos — e acho que há de surgir uma estrela nova ali depois que Gil e sua linda banda, comandada pelo filho Bem, passaram por ali e se despediram o som de um trio elétrico tinindo e trincando.
Aquele abraço para quem fica, pois Gilberto Gil vai saindo dos palcos para entrar na eternidade com a elegância ubuntu que lhe é peculiar e que sempre espalhou de forma doce e balançada: ele “é” porque todos “nós somos”. E o melhor lugar do mundo é aqui e agora.