Por Sandoval Matheus

Existem verdades inconvenientes que precisam ser frequentemente repetidas para não se perderem na névoa dos conceitos pré-estabelecidos. Uma delas é a de que a Música Popular Brasileira, a MPB, nunca foi exatamente “popular”, fazendo há décadas muito mais o gosto de pequenos grupos compostos por universitários e uma classe média tida por sofisticada do que do grosso da nossa população.

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O triunvirato formado pelos octogenários Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil é a prova. Até hoje, são tidos por alguns como “a cara do Brasil”, apesar de o próprio Brasil nunca ter sido consultado a respeito. E eu costumo dizer que o Brasil, para o bem ou para o mal, sempre teve muito mais a ver com uma jukebox tocando Amado Batista num puteiro em Serra Pelada.

Ou Raul Seixas.

O baiano magricela de Salvador, inclusive, chegou a excursionar ao coração da corrida do ouro nacional, em época de vacas magras, onde foi perseguido por garimpeiros e não deixou de distribuir autógrafos nem mesmo enquanto usava a privada, conforme registrou numa canção de seu último disco.

Raul desembarca em Serra Pelada para o show lendário. Foto: reprodução Facebook/O Universo Raulseixista

Raul – que, se fosse vivo, também completaria oitenta anos neste sábado, 28 – foi muito menos amado pela crítica especializada, mas conseguiu penetrar em rincões onde nenhum outro figurão da MPB pensou em estar. Talvez por sempre ter tido uma vontade genuína de fazer sucesso de público, talvez por entender melhor a alma do lugar em que vivia, e talvez por ter aprendido, nos dois anos em que passou fome na Cidade Maravilhosa, a importância de difundir sua mensagem.

Raul foi capaz de conquistar mentes e corações de norte a sul do Brasil, em todas as classes sociais. Sua música é admirada por garis, empregadas domésticas, policiais aposentados, jornalistas. Ouvida em roças, periferias e nas mais cosmopolitas capitais. Tem um exército fanático de fãs que muitas vezes ultrapassa os limites do razoável na defesa e na interpretação do ídolo. As letras que escreveu por pouco não viraram o breviário das liturgias de uma nova religião. Quer acertar a trilha sonora de um churrasco sem correr o risco de ser abatido a tiros? Aposte nos clássicos de Raul.

Onde eu nasci, numa pequena cidadezinha do interior do Paraná, nenhum dos medalhões frequentemente incensados da nossa música dava as caras, nem mesmo de forma figurada. Eram as fitas K7 de Raul que circulavam nos walkmans dos adolescentes e nos carros avariados dos velhos, junto com Milionário & José Rico, rumo a alguma pescaria. Eram essas mesmas fitas que meu pai e eu compartilhávamos em uma cabine de caminhão, nas viagens que eventualmente fazia com ele em minhas férias escolares.

Mesmo em sua fase mais esotérica, Raul era capaz de fazer a cabeça do mais convicto dos materialistas. Ao compor e gravar músicas que misturavam tudo e mais um pouco, foi admirado por roqueiros, por sertanejos como Zezé Di Camargo & Luciano e por Nelson Sargento, o célebre sambista da Mangueira – que, reza a lenda, chorou quando recebeu a notícia de sua morte.

Pra isso, não teve que fazer concessões. Estourou nas rádios com “Ouro de Tolo”, uma crítica feroz à mediocridade média em pleno Milagre Econômico. A debochada “Mosca na Sopa” escapou dos censores da ditadura por ser considerada inofensiva. Ele imprimiu um libelo contra a tirania até mesmo em “Carimbador Maluco”, uma canção considerada infantil.

No regime militar, penou como muitos outros, incluindo o brega Odair José (de quem Raul havia sido produtor em início de carreira), em episódios muitas vezes esquecidos pela nossa história protocolar. O roqueiro entusiasta de Luiz Gonzaga foi preso e pode ter sido também torturado. Precisou se exilar nos Estados Unidos, mas era muito mais rebelde e insolente do que maioria.

Raul nos tempos de ‘Gita’: o roqueiro mais perigoso da América Latina. Foto: Reprodução

Loroteiro de marca maior, voltou poucos meses depois proclamando a mentira deslavada de ter passado três dias no apartamento de John Lennon, “discutindo a Sociedade Alternativa”. Mais do que isso, emplacou em seu retorno o álbum “Gîta”, um sucesso comercial que vendeu 600 mil cópias e começava a desafiar os milicos já na capa: lá estava Raul, com a indefectível barba e uma boina vermelha, na pose de quem faz um discurso que vai dividir a história, meio profeta do apocalipse, meio líder revolucionário. Um Che Guevara anêmico e provocador. Um moleque maravilhoso, mais perigoso.

É possível que a morte precoce tenha contribuído para o mito de Raul Seixas. Afinal, entregue à depressão, à bebida e às drogas, ele definhou por pelo menos uma década, praticamente esquecido por todos, e chegou a circular por aí com um galão de éter de cinco litros a tiracolo. Num show no interior de São Paulo, subiu ao palco tão bêbado que a plateia o confundiu com um sósia e a coisa quase acabou em linchamento. Por fim, foi encontrado morto em seu apartamento pela empregada, aos 44 anos, em 1989. O escritor Paulo Coelho, parceiro de alguns dos maiores sucessos, disse: “Ele escolheu sua vida e escolheu sua morte. Poucos têm esse privilégio”.

Raul e Caê: o abraço entre dois baianos porretas. Foto: reprodução

Ressurrecto, voltou ao panteão da glória como um raro artista com uma trajetória real de ojeriza ao autoritarismo, e não alguém que apenas utilizou essa desculpa como comodidade estética. Não consta, por exemplo, que Raul tenha participado de indignas passeatas contra a guitarra elétrica (Gilberto Gil) ou, mais recentemente, acarinhado o legado do stalinismo (Caetano Veloso), nem integrado conspirações judiciais para censurar escritores e jornalistas (esse pessoal todo, por meio do infame movimento “Procure Saber”).

Morrer jovem pode ter lá suas vantagens. Nunca diga que a vitória está perdida.

*A opinião do colunista não reflete a opinião do Fringe. 

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