O momento auge da experiência do espectador de arte é aquele em que, durante o aplauso final, ele se dá conta de que viu o processo de transformação da história e nada será como antes.

Acontece pouco, e é preciso ter a sorte de estar presente, mas a emoção é equivalente a ver a onça-pintada num carreiro amazônico. E sabe como é, tem gente que anda cinquenta anos na mata e nunca viu. Tem quem veja na primeira caminhada.

A Máquina

Material de divulgação de A Máquina no Festival de Curitiba de 2000.

Foi assim que me senti ao final do espetáculo A Máquina, montada no 9º Festival de Curitiba, no encantado ano 2000. A certeza era de que não era só o melhor teatro brasileiro possível, mas tinha muitas outras coisas no ar.
De certa forma, a peça antecipava a mudanças que aconteceriam nos anos seguintes no país, nos ambientes sociais, políticos e culturais. Basta ler a sinopse de apresentação da peça distribuída então:

“Para Antônio, viver é mais simples do que se imagina. ‘É o mundo que você quer? Então eu trago ele para você’, diz para sua amada Karina. Promessa é dívida. Na fictícia Nordestina, onde se passa a história, ele inventa uma máquina, chama a TV para vê-lo romper a barreira do tempo, dá um pulo lá no futuro e tenta trazer o que prometera: um mundo melhor que o presente”.

Pois um mundo melhor não só parecia possível, mas estava sendo construído a muitas mãos naquele momento e a peça falava disso e muito mais. Ela tinha o ritmo, a prosódia e o sotaque que seriam a marca dos anos vindouros. A inspiração confessa da linguagem eram os desafios dos cantadores de feira, mas tinha uma coisa geracional que falava com o rap e o hip-hop contemporâneos das grandes cidades do país.

Uma geração de atores

Sem falar, é claro, da geração de atores que dominariam as telas e palcos nas décadas seguintes, todos ainda desconhecidos: Wagner Moura, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão. Numa entrevista a Marcelo Rubens Paiva, na Folha de S. Paulo, o diretor disse que os escolheu porque eles eram jovens. “O mais velho tem 23 anos. Precisava de atores que ficassem três meses só pensando nisso”, disse.
Em outra entrevista, à revista Continente, ele contou com detalhes a divertida construção desse histórico casting:

“Primeiro, conheci Vlad. Fui conversar com ele, fiz vários elogios. Ele disse: ‘Tu tem que conhecer Wagner’. Fui ver o Wagner em uma peça, e depois conversei com ele. Falei: ‘Cara, você é muito bom’. Ele disse: ‘Tu tem que conhecer Lazinho’”,contou, às risadas.

O Armazém

A peça era baseada no livro A Máquina, estreia da carioca Adriana Falcão, adaptada ao palco pelo seu marido, o pernambucano João Falcão. Uma das mudanças da peça em relação ao livro é que o protagonista não era só um Antônio, mas quatro, cada um deles vivido pelos já citados aspirantes a astros. Karina era interpretada por Karina Falcão, sobrinha do diretor.

Tudo, aliás, era dividido em quatro, a plateia também, disposta como numa arena. O palco tinha uma traquitana giratória que era movimentada pelos atores, que assim controlavam a passagem do tempo: o passado, o presente e o futuro.

Exigia fisicamente do elenco e da produção um espaço grande como o do Armazém, à beira do rio Capibaribe, no Marco Zero de Recife, onde o texto foi ensaiado antes de vir para Curitiba. Tudo foi montado num galpão abandonado na rua onde eu morava naquele ano, e que hoje é uma igreja com porcelanato branco do piso ao teto e cadeiras plásticas.

O Anti-herói

Falcão tinha 42 anos e já tinha se firmado como um roteirista de sucesso na televisão e já tinha feito peças importantes com Marco Nanini e Marieta Severo, e meses depois, ele iria encantar o Brasil com sua adaptação – ao lado de Adriana e Guel Arraes – de O Auto da Compadecida, dos anti-heróis João Grilo e Chicó.
Para ele, Falcão, aliás, a boa recepção da fábula de amor de Antônio e Karina se devia à identificação do público com o anti-herói.

“Antônio não tem o perfil de um líder que prega revoluções. Sua beleza está exatamente na humanidade com que se dedica à conquista do seu amor, o que o aproxima de qualquer um de nós”, disse.

Pode ser por isso que me identifiquei tanto, mas não fui o único. A peça foi muito elogiada pela crítica e abraçada pelo teve cinco apresentações em Curitiba. Eu vi a primeira no dia 16 de março. Também tinha menos de 23 anos, achava que conseguiria mudar o mundo e tive a certeza de ter visto a onça pintada dentro daquele galpão.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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