O historiador Luiz Antônio Simas costuma dizer que o símbolo que melhor representa o Brasil contemporâneo, o país que surgiu após os movimentos republicano e abolicionista do final do século 19, é um pedaço de pau.

Mais do que a madeira em si, o que importa é o seu uso. Esta baqueta enfim iria parar de açoitar o corpo dos escravizados – que bom se tivesse sido – e passaria a percutir a pele do tamborim para, assim, inventar um país cujo símbolo cultural máximo é o samba, rural e urbano, criado ao mesmo tempo na Bahia e no Rio de Janeiro.

Sou devoto desta cosmogonia cujo centro está no tamborim, este simpaticíssimo e pequeno tambor que já era muito usado por aqui nas danças santas de origem africana, como os cucumbis (cerimônias de coroação e funeral em algumas monarquias africanas) e maracatus.

Fundador do Trio Mocotó, Fritz Escovão foi lenda da cuíca. Foto: Reprodução

Trata-se, pois, de um pequeno aro de metal recoberto de pele de algum animal – nas melhores tradições, gado bovino, caprino ou “felino” – em uma das bordas, que desde sempre é o instrumento indispensável da batucada brasileira. A experiência mostra que um tamborim bem tocado basta para puxar um bloco ou um cordão inteiro.

Ele, o tamborim, está na lista de nove instrumentos musicais do samba, reconhecidos como manifestações da cultura nacional, em lei sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada no Diário Oficial da União no dia 30 de setembro.

Em ordem alfabética, os nove instrumentos são: a cuíca, a frigideira, o rebolo, o repique de mão, o surdo, o tantã, o tamborim, o timba e o pandeiro. De acordo com a lei, todos os instrumentos deverão ser denominados como manifestações da cultura nacional quando seguirem as práticas e tradições culturais a eles associadas em seus respectivos modos de produção. As formas e os modos de produção dos instrumentos musicais serão detalhados em decreto. O samba que já foi perseguido pelo Estado ganha proteção legal.

Laurindo e a Cuíca

As tradições ligadas à cuíca são as que mais me fascinam.

A forma mais simples de defini-la é como um tambor de fricção, mas só isso não daria conta. Na definição de Mário de Andrade, sempre ele,  é um “cilindro oco que tem por tímpano uma pele esticada, ao meio da qual, pela parte interna, se prende uma haste de pau ou fita de couro que, friccionando-se com a mão úmida, produz um som rouco”. Em diferentes regiões do Brasil, este tipo de instrumento tem outros nomes, como roncador, onça ou adufe.

A invulgar arte de tocar cuíca motivou o mais notável caso de construção coletiva de personagem de nossa história poética. No samba “Triste Cuíca”, feito em parceria com Hervê Cordovil, Noel Rosa apresenta Laurindo, um galante cuiqueiro do morro da Mangueira, que foi vítima de um crime passional sob as vistas grossas da polícia. A cuíca do Laurindo “gemia feito um boi” e melhorava qualquer samba.

Nos anos seguintes, compositores como Herivelto Martins, Wilson Baptista, Zé da Zilda, Haroldo Lobo e Heitor dos Prazeres usaram o personagem em outros sambas, acrescentando novos capítulos à trajetória épica do mestre da cuíca. Na década de 1970, a cuíca foi levada às últimas consequências pelos músicos do chamado “samba-rock”. A execução da cuíca por Neném, um dos craques deste esporte, em Xica da Silva, e em boa parte das faixas do álbum África Brasil, de Jorge Ben Jor, é o ponto alto do encontro entre a musicalidade ancestral africana e a chamada “música pop”.

Um pouco antes disso, contudo, em 1969, Fritz Escovão fundou o Trio Mocotó com ele na cuíca, João Parahyba na bateria e Nereu Gargalo no pandeiro, para ser talvez o melhor cuiqueiro de sua geração. Fritz morreu em 1º de outubro, um dia depois de seu instrumento ser reconhecido como patrimônio nacional.

Novos Símbolos

Alguém há de dizer que estas coisas são simbólicas e mudam muito pouco a realidade, mas não eu. Tudo é simbólico antes de ser real. Veja o caso de outros dois instrumentos na lista dos “nove tambores”. Instrumentos que simbolizam uma segunda era do samba urbano brasileiro, cuja capital é novamente o Rio de Janeiro, com uma monarquia que ainda está no poder.

O tantã é um dos instrumentos mais encontrados em todas as regiões da África, na Oceania, no México e entre os povos ameríndios. Sua diferença original é a forma monóxila, sem encaixes, sendo apenas um tronco de árvore oco, com fendas nas extremidades. Era usado na comunicação e nos rituais das sociedades ancestrais. No samba contemporâneo, o tantã ganhou protagonismo destaque pelo músico Sereno, do grupo Fundo de Quintal.

Já o repique de mão, mais jovem, tem paternidade verificável: foi criado nos anos 1970 por Ubirany Félix do Nascimento, falecido em 2020. Ritmista e compositor, Ubirany foi também um dos integrantes do Fundo de Quintal e revolucionou o samba no histórico álbum “De Pé no Chão” (1978), de Beth Carvalho. Foi, talvez, o primeiro registo fonográfico de sua criação, o repique de mão, instrumento que aperfeiçoou nos pagodes do bloco Cacique de Ramos, no Rio de Janeiro (RJ).

  • Leia Também: O samba de sangue azul 

A revolução de Ubirany nasceu do acaso. Consta que ele teve a intuição numa festa quando por curiosidade artística retirou a baqueta do repique, removeu uma de suas peles e rebaixou o aro, permitindo tocá-lo com as mãos. Já estávamos, portanto, numa era pós bastão de madeira do Simas. O próprio Ubirany explica o processo no vídeo abaixo:

A coisa pegou e, em pouco tempo, o novo instrumento já era produzido em escala industrial e não podia faltar nas rodas de samba do Rio. Depois de 1978, o samba sem o repique de mão, tocado suavemente nas pontas dos dedos, se tornou inimaginável.

Podia, mas não vou falar de cada um dos instrumentos, pois uma boa batucada é como um bom poema e precisa saber a hora de acabar. Mas, cidadão do Brasil pandeiro que sou, achei toda essa movimentação de reconhecimento dos nossos tantãs uma das melhores notícias do ano.

Batucando, venceremos.

 

 

 

 

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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