Por Sandoval Matheus, especial para o Fringe

Se um político – ou pelo menos um político com o verniz da velha guarda – fosse definir a relação da maioria de nós com o mundo, poderia sintetizar tudo numa frase clássica, daquelas feitas pra baratinar entrevistas: “São adversários, mas não inimigos”.

Para boa parte de nós, o mundo soa como isso aí mesmo, nem sempre abertamente hostil e diretamente violento, mas um antagonista diário, incontornável. Ele não respeita nossos princípios, não liga pra nossos argumentos e nem se importa com os planos traçados, mas dispensa a cortesia de não sair correndo atrás de cada um armado com um porrete, não nos coloca cotidianamente entre a faca e o revólver. No fundo, não temos toda essa importância. Somos os caras de sorte.

Piripkura

No estado do Mato Grosso, coração da Amazônia, dois outros sujeitos estão travando uma luta muito mais inglória com o mundo que os cerca. Ou era isso que acontecia até 2018, quando foi lançado o documentário “Piripkura”, dirigido por Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge, e que recentemente apareceu no catálogo do Prime Video.

O filme conta a história de Pakyi e Tamandua, tio e sobrinho, os dois últimos integrantes nômades dos piripkura – há uma terceira sobrevivente, Rita, que deixou da floresta –, um povo indígena trucidado ainda no início dos anos 80.

Pakyi e Tamandua, os dois últimos integrantes nômades dos piripkura. Foto: Reprodução

Os piripkura são baixinhos, ágeis e espertos, características que fazem com que apenas dois deles tenham sido capazes de viver por tantas décadas encurralados por grileiros, madeireiros e jagunços que com certeza ficariam felizes em lhes dar um tiro. Eles zanzam pela floresta completamente nus, e carregando apenas um facão e o fogo de uma tocha, que não deixam que se apague há quase vinte anos.

Os dois vivem numa nesga de vegetação preservada, um enclave protegido por uma portaria da Funai que precisa ser renovada com frequência. Pra isso, a cada dois anos, o indigenista Jair Candor, um mateiro encarquilhado o suficiente pra ser considerado um dos maiores rastreadores da Amazônia, lidera uma expedição para encontrar ao menos indícios de que os dois últimos piripkura ainda por ali, e garantir a proteção dessas terras.

“Piripkura”, o documentário, acompanha duas dessas expedições, em que Candor caminha quilômetros floresta adentro, mesmo com o joelho estourado, em busca dos dois últimos espécimes de um povo que, a bem da verdade, não tem mais salvação, não pode mais se reproduzir fisicamente.

O Fim do Túnel

O longa não carrega o roteiro nas tintas. A narrativa é exposta de uma forma crua, sem piruetas ou invencionices. Não há também uma trilha sonora daquelas que parece encarar como uma missão pessoal fazer você se debulhar em lágrimas. A história já dramática o bastante.

Mesmo assim, ao fim do documentário, minha namorada chorou. A meu modo, também me emocionei. E fiquei com uma pergunta feita por Jair Candor, ainda no início do filme, enquanto ele dirige por uma estrada embarreada, dando de cara com caminhões carregados com toras de madeira com o diâmetro de uma sala de apartamento, encravada na cabeça: “Será que a gente já não derrubou floresta o suficiente pra sustentar a porra desse país?”.

A julgar pelo resultado das últimas eleições municipais, não. Mesmo com as cenas infernais das queimadas que se espalharam pelo país correndo a TV e a internet, mesmo com o desastre no Rio Grande do Sul, mesmo com as ondas de calor cada vez mais inadministráveis, prefeitos condenados por desmate e incêndios foram reeleitos. A crise ambiental e a emergência climática não foram, digamos assim, uma grande pauta das campanhas eleitorais.

Não há luz no fim da mata para os piripkura. E provavelmente nem para nós. O mundo que se camufla de adversário civilizado é na verdade um inimigo feroz.

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