Bebi bastante com uns gringos no meu boteco da rua São Clemente. No auge da empolgação, dei a eles meu telefone e disse “qualquer coisa, só ligar”. Meses depois, liga um cara. Diz que era norueguês, que pegou meu telefone com aqueles outros, que estava no Rio e precisava de um lugar para ficar uns dias. Confuso e desidratado, assenti. Em meia hora, chegou um cara de uns 140 quilos para ficar uma semana no meu conjugadinho.

O apartamento ficava num “balança, mas não cai” famoso da praia de Botafogo. Da sacada, um metro quadrado, esticando o pescoço, dava para ver o Pão de Açúcar e a enseada… que lindo! O cara ficou com meu colchão. Eu, em cima de um cobertor. Na verdade, a gente pouco se viu. Quase não dormia naquele tempo. Desmaiava de três em três dias. Bebedeiras de dia e peladas de madrugada na praia eram minha rotina. Eu era o “gaúcho”, goleiro do time dos garçons e chapeiros da região que se juntavam para jogar bola quando fechavam os botecos.

A maioria era do Ceará, muitos nascidos em Crateús, a cidade dos garçons. Um dia, o norueguês foi conhecer a “mítica praia de Ipanema”. Levou um torrão e ficou três dias sem sair do colchão. Quando me ligou dizendo que tinha ido embora, fiquei tão feliz que decidi comemorar. Bati na porta da Olga, vizinha e única amiga no condomínio. Ela tinha amputado as duas pernas. Diabetes. Fora as muitas restrições pelo tratamento do HIV. Mas nunca negava convite para uma cervejinha e outras coisas.

Às vezes, eu a levava para passear de cadeira de rodas no largo em frente à nossa casa. Pois era ali que alguém – nunca soube quem – deixava algumas coisas para ela na barraca de um chaveiro. Uma sacola de feira de plástico com latas de sardinhas e outros viveres. Era bonito de ver: o gringo e a travesti de cadeira de rodas.

Olga me contou que ficava anos sem tomar banho. O hábito fazia com que sua presença fosse percebida num raio de 20 metros. Tinha um cheiro azedo de sardinha do qual se orgulhava: “eu fedo como os portugueses que chegaram nas caravelas”.

Naquele dia, tomamos umas boas e ela me contava histórias de seus tempos de trottoir na Lapa e Catete. Só porrada. Ouvi no rádio sobre um show de não sei quem que eu achava muito bom na quadra do Império Serrano. Pensei que era uma boa para comemorar a liberdade reconquistada. Fui para Madureira de ônibus e trem. Cheguei doidão. Uma em cada portinha pelo caminho.

Vi o tal show meio de longe. Em último espasmo de lucidez, deixei os dois reais do ônibus dobrados na meia. Era um Brasil sem máquinas de cartão e tudo o que veio depois. Tinha-se que sacar o dinheiro no banco 24 horas e cuidar para que não acabasse. Nunca consegui. Torrei tudo e, insolente, arrumei uma confusão com uns caras. Tive que sair fora.

Como eram umas 5h da manhã, resolvi ir andando até a Zona Sul. Sei que qualquer território contíguo pode ser acessado a pé, com tempo e persistência. Achei que dava, mas quando cheguei à altura da Triagem, antes da Mangueira, vencido, dormi numa praça. Acordei com a boca cheia de formigas, mas não morto. Ainda que um cara tenha gritado de um caminhão: “Olha onde você tá, gringo filho da puta… Quer morrer?”

Não tinha mesmo ideia. Quando consegui fazer o inventário, lembrei de ter salvado (de mim mesmo) o dinheiro da condução. Tomei um ônibus até o centro e de lá caminhei até o lar. O sol derretia a paisagem. Quando cheguei na portaria, pedi a chave, pois o noruego disse que lá a deixara, mas o funcionário de turno falou que estava com o colega do turno da noite.

“Vão tomar no cu”, eu disse. E subi pelo elevador até o meu andar. Chegando em frente à porta, tomei a distância possível e dei a voadora. Ela cedeu um pouco. Repeti a operação e o caixilho caiu. Num terceiro ataque, abri o vão necessário para me imiscuir na quitinete. Tomei uma ducha e me deitei pelado, tendo o último cuidado de virar o colchão para amenizar o budum norueguês.

Tive sonhos intranquilos. Acordei com golpes de instrumento contundente na altura do fígado. Virei-me e notei que havia dois policiais dentro do apartamento. Um mexia nas minhas coisas, o outro me espetava com o cassetete. Na porta, vizinhos espiavam a cena. Com muito custo, consegui vestir uma bermuda e achei o contrato de aluguel. Os caras saíram e eu fiquei olhando a baía. Parece mesmo uma boca banguela.

Olga apareceu na porta com seu veículo e me perguntou se eu poderia ajudá-la a descer para pegar as coisas. “Claro”. Quando chegamos, o chaveiro já sabia da minha façanha. “Foi esse aí que porrou a porta então…” Ele disse que sabia como consertar e eu falei para ele passar lá depois. Olga tinha adorado aquele sururu e queria beber um chope. Eu pensei: por que não?

Quando estávamos atravessando a faixa de pedestres, rua Voluntários da Pátria, alguém gritou de dentro de um carro: “Tá comendo esse traveco aí o gringo viado?!”

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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