Quando conheci Lolo Cornelsen, no começo dos anos 2000, ele tinha um escritório no primeiro andar do edifício Don José, um dos prédios que projetou no centro de Curitiba. Fazendo cá minhas contas, Lolô já tinha mais de 80 anos, mas sempre esbarrava com seu corpanzil ágil pelos corredores do edifício que também frequentava.

Em seu pequeno ateliê, com vista para a praça Carlos Gomes, Lolo passava tardes pintando nus de modelos que, à época, eu tinha a impressão de serem moradoras boêmias do prédio. Como um bom projeto modernista, o Don José tinha plantas de tamanhos diferentes, o que sempre promove uma saudável integração entre classes sociais, além de um térreo ativo que garante segurança para quem nele mora.

Lolo Cornelsen foi modernista desde que nasceu, em 1922. Foto: Acervo Pessoal/Reprodução

Um dia, ele me deu uma dessas pinturas em troca de um álbum de figurinhas do Athletico, no qual ele aparecia como um dos destaques do lendário título paranaense de 1945. Aos 23 anos, o lateral-esquerdo teve participação heroica ao jogar de braço quebrado a partida decisiva. Lolo foi um dos artífices da consolidação da rivalidade entre Athletico e Coritiba.

Time do Athletico Paranaense campeão de 1945. Lolo é o segundo da esquerda para direita. Foto: Reprodução

Lolo me presenteou com a fantástica pintura de uma mulher de costas. Decidi que seria a primeira obra importante de uma coleção pessoal que, desde então, avançou muito pouco. Mas não importa; nem todo mundo sabe o valor artístico e histórico de ter uma obra de Lolo Cornelsen em seu quarto ou em sua cidade, apesar de haver muitas espalhadas pelo mundo.

A melhor forma de entender o legado desse criador extraordinário é o livro Lolo Cornelsen, escrito pelo arquiteto Guilherme de Macedo e organizado por Josehenrique Zucchi.

É possível comprar o livro pelo site da Lona Group

O livro, preparado para o centenário de Ayrton Cornelsen, aliás Lolo, em 2022, foi relançado em edição luxuosa, com 250 páginas de papel couché, fartamente ilustradas com os projetos deixados por Lolo, tanto os que foram construídos quanto os que não chegaram a ser realizados, mas inspiraram outros, além de um vasto material fotográfico do biografado, que era um personagem singular.

Papo-furado e Poltrona Mole

Além da pesquisa de Macedo, o livro é repleto de paratextos de amigos e colegas que procuram dar a dimensão de sua importância na arquitetura e no urbanismo mundiais. Macedo, que tem no currículo a produção de outro volume clássico sobre o urbanismo da cidade onde vive, Prédios de Curitiba, conta que teve o primeiro contato com o trabalho de Lolo assim que entrou na faculdade de arquitetura, em 2010.

“Nessas explorações encontrei muitos conteúdos sobre o Lolo e, um belo dia, resolvi bater à sua porta para tentar entrevistá-lo. Fiquei surpreso com sua receptividade; naquele momento, criei uma conexão com Lolo e sempre tive a porta aberta para novas conversas.”

Lolo fuma seu cachimbo em sua poltrona mole. Foto: Acervo Pessoal/Reprodução

Conversas que podiam ir de análises profundas de projetos ao papo furado, do cafezinho ao bitter que Lolo gostava de oferecer enquanto fumava seu cachimbo na poltrona mole que ganhou do próprio Sérgio Rodrigues, designer do clássico móvel brasileiro.

“Quando me formei, abri meu escritório na Casa Belotti, um lindo projeto dele. Por ser arquiteto e conhecê-lo, acabei muitas vezes sendo uma espécie de guia da casa, recebendo alunos e até excursões que visitavam Curitiba, especialmente de cursos de arquitetura. Com o tempo, ganhei a confiança dos filhos de Lolo, e diversos assuntos eram trazidos para eu ‘avaliar’. Isso acabou fortalecendo um vínculo pessoal com eles”, disse.

Por experiência própria, sei que Lolo apreciava conversar, mas não gostava que o interlocutor assumisse posição reverente ante ao “gênio” ou “mestre”; nessas ocasiões, invariavelmente, erguia o dedo do meio e mandava um palavrão àqueles que tomava por puxa-saco.

Todas as loucuras de Lolo

Para Macedo, o livro é importante por reunir de forma mais organizada a trajetória de Lolo e suas obras. “Assim, a compreensão sobre o Lolo pode ser mais bem aprofundada, e espero que chegue aos leitores e entusiastas da arquitetura, assim como ao público em geral.”

As descobertas sobre a produção de Lolo foram muitas; sempre surgia uma nova casa de que alguém dizia: “Essa é do Lolo”. Muitas casas foram demolidas e não havia acervo ou outras informações, o que causa espanto e frustração. Tem muita edificação com cara do Lolo, que ele reconhecia como dele, mas sem documentação que justifique a inclusão na publicação.

O casal Lolo e Cleuza: o arquiteto fez seu melhor projeto para a companheira. Foto: Acervo Pessoal/Reprodução

Por outro lado, tem tanta coisa no Brasil, na Europa e na África lusófona que não chega a fazer falta. Só autódromos são quatro: Autódromo Internacional de Curitiba, Autódromo de Jacarepaguá (Rio de Janeiro), Autódromo de Luanda (Angola) e Autódromo de Estoril (Portugal).

Escolas, hospitais, hotéis, clubes, resorts e estádios também. Muitas dezenas de casas e prédios, nem todos modernistas como ele que assim já nasceu em 1922. Lolo usou várias linguagens a gosto dos fregueses, mas seu traço foi decisivamente influenciado por Le Corbusier, seu discípulo Alfred Agache, que foi chefe de Lolo em Curitiba nos anos 1940, e os demais modernistas brasileiros.

A icônica residência Cleuza Lupion que virou ponto turístico em Curitiba. Foto: Reprodução

Às suas obras mais ousadas – na forma e no conceito – costumava chamar de “minhas loucuras”. Mas não tinha nenhuma insanidade em seus projetos e sim muito método, pois a boa arquitetura une utilitas (utilidade) e venustas (beleza), para gastar o latim. Ou como ele mesmo disse em carta testamento: “arquitetura é encontrar o criador antes dos anjos”.

Lolo inventou a caixa de brita do automobilismo e o elevador panorâmico, mas ele não foi apenas um arquiteto revolucionário e décadas à frente de seu tempo na ultraprovinciana Curitiba dos anos 1950. Foi desenhista, designer de móveis, engenheiro, artista plástico e jogador de futebol. Sobretudo, Lolô foi uma figura incomparável, genial, irrepetível na paisagem humana da cidade onde nasceu e morreu, e nos lugares por onde passou.

Imagem da inauguração do Autódromo do Estoril projetado por Lolo Cornelsen. Foto: Reprodução

O Homem-Asfalto

Como homem público, ganhou a alcunha de “Homem Asfalto” quando foi diretor-geral do Departamento de Estradas de Rodagem do Paraná. Em um tempo que governar era “abrir estradas”, foi responsável pela pavimentação de mais de 400 quilômetros de rodovias interligando o Paraná.

Para Macedo, porém, o maior legado de Lolo são a potência e o conjunto de suas intervenções. “Ele estava sempre onde as coisas aconteciam. E, ao longo do tempo, suas obras permaneceram relevantes ou ainda atemporais. A inventividade aplicada em um tempo em que as pessoas viviam o bucólico e o provincianismo reflete a astúcia e perspicácia dele, que não ligava para o que os outros pensavam, mas fazia o que acreditava. Lolo eterno”.

 

O quadro (com vidro da moldura trincado) que o Lolo me deu.
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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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