Antes de ultrapassar o grande portão de ferro do prédio do antigo necrotério do Instituto Médico Legal (IML), no centro de Curitiba, foi preciso assinar voluntariamente um termo de responsabilidade. Era a noite da última quarta-feira (27) e lá aconteceria uma das últimas sessões do espetáculo A Maldição dos 27 Anos, da companhia Vigor Mortis, em cartaz no peculiar espaço desde o último dia 14 até o próximo domingo, 1º de dezembro.
No papel, cada uma das cerca de 15 pessoas reunidas não apenas cediam seus direitos de imagem, como arriscaram algo maior, assumindo a responsabilidade sobre tudo que estava para acontecer. Foi o que fiz sem pensar muito, ao lado de um grupo de alunos dos cursos de artes e teatro da Unespar.
Atravessamos o estacionamento lotado de SUVs da Polícia Científica do estado, o mesmo espaço onde os presos da Operação Lava-Jato eram apresentados à imprensa (e à execração pública) uma década atrás. Fomos recepcionados numa sala cheia de souvenires, memorabília, objetos icônicos das muitas montagens da Vigor Mortis: cabeças decepadas, arpões ainda com matéria orgânica na ponta, um livro da Biblioteca do Senhor Lucchetti, entre outros itens.
Numa tela de TV analógica, vemos uma espécie de retrospectiva das peças e filmes mais marcantes da companhia liderada pelo diretor Paulo Biscaia Filho como “Morgue Story”, “Nervo Craniano Zero” e “Crime no Manicômio”. Tudo era pista, indício, planting do que veríamos a seguir, afinal estávamos no IML, onde cada gota de sangue ou fio de cabelo importa e explica muita coisa.
A Maldição dos 27 anos
Devo dizer que já conhecia aquele prédio de outros carnavais. Na verdade, das aulas de medicina legal na faculdade de direito com o lendário professor Elias Zacharias, que por muitos anos foi diretor do morgue local. Uma figura extraordinária que, bem podia ter sido um dos personagens de Biscaia, pois apesar de ser um homem doce e justo, tinha inegável prazer em nos apresentar crânios rachados a machadadas para ensinar a diferença entre lesões contundentes e perfurocortantes.
Mesmo familiarizado com o ambiente, preciso dizer que há uma energia diferente ali, mesmo com minha carteirinha de agnóstico convicto, que, em todo caso, manteve as mãos para trás como me fora recomendado (me disseram que os espíritos podem entrar pelas nossas mãos se as deixamos postas e altas).
A título de prospecto, o grupo foi recepcionado numa salinha por criaturas mascaradas e assistimos a um telejornal que explica a trama: há um serial killer à solta, o fenômeno astrofísico da “lua de sangue” terá influência em eventos sobrenaturais e uma cientista tenta nos prevenir para que não entremos lá. Em vão. Depois do alerta dantesco para deixarmos ali todas as nossas esperanças, a porta de metal se fecha de um golpe e já era.
Biscaia se junta ao grupo, com um avental de açougueiro, dirigindo em silêncio os movimentos da peça que mistura elementos do teatro site-specific com os túneis do terror dos parques de diversão de antanho, que pensando bem sempre foram uma forma de teatro popular. E assim a coisa começa.
Criaturas e Cientistas Malucos
Um divertidíssimo périplo pelos corredores e salas escuras do IML como se estivéssemos num museu uma coletânea de situações chave dos espetáculos mais importantes da companhia. São quase 45 minutos de diversão pura, mas me disseram que algumas pessoas passaram mal, não aguentaram e pediram para sair.
No gelado e escuro prédio – um cenário de fato, bem macabro – o grupo liderado por uma vampira enfrenta zumbis que ressuscitam da mesa de autópsia, ousam sair das gavetas do IML, fogem de criaturas criadas por cientistas malucos, veem decapitações, mutilações, lobotomias ao som de hits pop, precisam pensar em grupo uma fuga de um escape room e são perseguidos pelo próprio diabo e sua legião de demônios.
O problema é que o diabo sabia meu nome e falava assim: “Renda-se Sandro, eu sei o que você está pensando”. Confesso que no começo achei muita graça, mas com o tempo fiquei cabreiro. Como ele sabe meu nome? Será que era por que era o ótimo ator Ed Canedo, que conheço há décadas ou foi porque assinei a lista no começo? “Não, não deve ser isso. Isso é o que o diabo quer que eu pense”, concluí. O truque do diabo é fingir que não existe.
Não sei se Biscaia usa a estratégia criada por P.T. Barnum, o inventor do show business que colocava seu próprio pessoal na plateia para tornar tudo mais grave e dramático. Acho que sim. Como diria Barnum: “never give a sucker an even break”.
Grand Guignol e filas de espera
Quando foram anunciadas as sessões de “A Maldição dos 27 anos”, os ingressos – e as filas de espera que se formaram – se esgotaram em menos de uma hora. O ambiente não permite grupos maiores do que 20 pessoas para cada uma das quatro sessões diárias que terminam no domingo (1º) à noite. A única chance é que alguém desista e sobre algum lugar, mas daí é questão de sorte de cada um. Ou azar.
Na verdade, tudo é uma grande brincadeira séria para celebrar os 27 anos da companhia do Grand Guignol curitibano. Houve uma conjunção de várias luas de sangue que possibilitou usar o espaço público que está ocioso para um fim nobilíssimo. O necrotério local funcionou ali até 2018 e o espaço – hoje ocupado pelo Museu Paranaense de Ciências Forenses – foi espertamente cedido para a montagem.
A produção é a essência dos trabalhos da Vigor Mortis. Efeitos especiais simples, mas sofisticados. Texto e elenco impecáveis. As referências mais legais possíveis ao cinema, teatro e ao universo pop. É como estar num dos filmes de terror e monstros da Universal Pictures, com Vincent Price e Bela Lugosi, mas também como fugir da Monga num circo do interior. Diversão de primeira na veia – ou na jugular. Um espetáculo que devia ser permanente e incorporado ao patrimônio cultural local.
A Maldição dos 27 Anos, da companhia Vigor Mortis
Onde: Museu Paranaense de Ciências Forenses de Curitiba (Antigo Necrotério) – Av. Visconde de Guarapuava, 2.652, Curitiba;
Quando: até 1º de dezembro em quatro horários diários: 19h, 19h30, 20h30 e 21h30;
Quanto: entrada gratuita, sessões esgotadas com público limitado a 20 pessoas por sessão,