Por Mirela Costa – do Jornal da USP
No Recôncavo Baiano, foram criados os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia. Na esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, em Belo Horizonte, os membros do Clube da Esquina se encontravam. Já no Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, cresceu Mano Brown, um dos Racionais MC’s.
Do Norte ao Sul do País, a música brasileira atravessa fronteiras e carrega elementos característicos dos espaços nos quais circula. Foi com base nesse princípio que os pesquisadores Renata Rocha e Fábio Maleronka organizaram o livro Caixinhas de Música: Conversas sobre Música Brasileira, Tempo e Cidades.
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Lançado no dia 2 de dezembro pela Editora Autonomia Literária, o livro reúne entrevistas com artistas nacionais de diversas origens, gêneros musicais e gerações. Há conversas com músicos nascidos nas décadas de 1930 e 1940, como Alaíde Costa e Ney Matogrosso, e artistas dos anos 1980 e 1990, como Felipe Cordeiro e Alice Caymmi.
Nas entrevistas, eles contam sobre suas trajetórias, referências culturais, relações com o território e perspectivas quanto à conexão entre passado, presente e futuro na música brasileira.
“Além de produzir um registro espaço-temporal sobre a música no Brasil, o livro explora como as vozes e as vidas desses artistas são relevantes para a cultura nacional”, afirma Renata Rocha, que é também ilustradora da obra. Arquiteta urbanista graduada pela Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (FAU) da USP, ela aponta que as entrevistas aproximam o leitor e os músicos e promovem reflexões sobre as raízes históricas do País. Maleronka, que é doutor em Sociologia da Cultura pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, acrescenta: “O Caixinhas de Música é uma devolutiva ao que a música deu ao Brasil”.
De frente com a MPB
Os organizadores enfatizam que, ao longo das páginas, os relatos dos artistas seguem um tom espontâneo e descontraído de conversa. “Nas entrevistas, a ideia era que a gente os ouvisse da forma mais livre possível. Buscamos entender quais momentos importantes viveram, como se relacionam com outros artistas, em quais locais já se apresentaram e como interagem com seus públicos”, explica Rocha. Para além de encontros preparados ou previamente estabelecidos, ela conta que os diálogos se baseiam em trocas entre os entrevistadores e os entrevistados.
Segundo Maleronka, as conversas atingem a dimensão da vida cotidiana dos artistas, de modo a percorrer não só suas produções musicais, mas também suas relações com o tempo e o espaço em que vivem. “Em vez de fazer perguntas óbvias sobre esses músicos, procuramos investigar suas identidades e quem eles são como pessoas”, aponta. Segundo ele, “a música existe, sim, como linguagem artística, mas é principalmente um motor de reflexão sobre a própria vida”.
Os organizadores destacam a entrevista com o compositor e arranjador alagoano Hermeto Pascoal, que integra a geração mais antiga de artistas ouvidos para a produção do livro. Nascido nos anos 1930, Pascoal passou pelos cenários musicais de Caruaru e João Pessoa, onde tocou acordeão em rádios locais, e Rio de Janeiro e São Paulo, onde integrou a cena de samba-jazz. Hoje, é reconhecido como um artista instrumental. No Caixinhas de Música, o compositor fala sobre a universalidade da música, dá detalhes sobre seu gosto pela pintura e ainda conta histórias sobre o início de sua carreira.
“Tenho respeito na música como tenho com Deus. A música para mim está em tudo que você imaginar. A música é como o vento, ela está em todos os lugares, aonde você for no mundo, em qualquer lugar.”
De Milton Nascimento a Alice Caymmi
Entre MPB, rock, baião, rap, samba e funk, o livro propõe discussões sobre os variados gêneros que constituem a musicalidade brasileira. Além da diversidade de estilos, Rocha e Maleronka também pontuam a importância da variedade de gerações a que estão ligados os entrevistados para a obra. “A reunião de artistas tão diferentes entre si nesse compilado de entrevistas promove novos encontros e debates sobre temas transversais da nossa cultura”, complementa a organizadora.
Além de retratar as trajetórias das personagens do livro, Caixinhas de Música também traz curtos textos, destacados em meio às entrevistas, sobre as conexões entre as histórias dos artistas. “Ao ouvi-los, percebemos que muitos compartilham referências e vivem contextos similares, mesmo que em diferentes regiões do País”, conta Rocha. A partir dos caminhos entrecruzados traçados pelos músicos, os organizadores optaram por destacar trechos dos depoimentos em que os entrevistados relembram suas ligações com outros artistas.
“É impossível falar do Cazuza sem lembrar o Ney Matogrosso ou falar do Lô Borges sem lembrar o Milton Nascimento”, afirma Maleronka, ao evidenciar as relações entre alguns dos músicos. Na entrevista com Lô Borges, por exemplo, encontra-se destacado um relato de Milton Nascimento sobre o primeiro encontro com Borges, que, na época, era um menino de apenas dez anos.
Da amizade entre Milton Nascimento, Lô Borges e seus irmãos Marilton e Márcio, surgiu o movimento musical Clube da Esquina, na década de 1960. O organizador também ressalta a presença de Cazuza em meio ao depoimento de Ney Matogrosso: o autor de Exagerado e Codinome Beija-Flor fala sobre a liberdade sexual transmitida por Matogrosso.
Há ainda encontros improváveis no livro: Alice Caymmi, nascida nos anos 1990, conta sobre sua relação com Michael Sullivan, nascido na década de 1950. A cantora, neta do compositor e instrumentista Dorival Caymmi (1914-2008), produziu o álbum Ivanilton (2023), de autoria de Sullivan. Os cantores também firmaram parceria para a música Meu Recado, em que Caymmi compôs a letra e Sullivan, a melodia.
Conversar para pensar o futuro
Os organizadores reiteram que Caixinhas de Música, ao promover um registro da memória e do patrimônio da cultura do País, ampara reflexões sobre o futuro do Brasil. Segundo eles, é importante que grandes nomes da música brasileira estejam centralizados nos ambientes de debate público e sejam reconhecidos pelas universidades, como ocorreu com a cantora Marisa Monte, que neste ano recebeu o título de Doutora Honoris Causa da USP, e com Milton Nascimento, que vai receber o mesmo título da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“A música conta sobre um projeto utópico de País. Devemos trazê-lo à tona e discuti-lo, mesmo que ele não se realize”, diz Maleronka. Rocha acrescenta: “O livro nos ajuda a repensar o passado, refletir sobre como o Brasil está formado e de que forma podemos construir perspectivas futuras para o território”.
Caixinhas de Música – Conversas sobre Música Brasileira, Tempo e Cidades, de Renata Rocha e Fabio Maleronka (organizadores), Editora Autonomia Literária, 224 páginas, R$ 72,00.