Por Mario Helio Gomes
A notícia de que o Recife terá em breve um museu do brega parece a consequência natural de algo ocorrido em 29 de junho de 2021. Quando, por lei municipal, o brega passou a ser considerado patrimônio cultural imaterial da cidade.
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O Recife é um reino do brega?
Tanto quanto Belém do Pará e qualquer outra cidade brasileira. Apenas assumiu sem vergonha essa estranha aristocracia. Fácil de entender. Apesar das revoluções republicanas que notabilizaram Pernambuco, as referências monárquicas estão por toda parte. Tanto em nomes de ruas quanto nas designações comerciais. Há reis, rainhas e imperadores de quase tudo. Da picanha ao conserto de automóvel. Onde todas as lutas fracassaram, salve-se quem puder da carnavalização. Ano após ano, o rei Momo recebe as ‘chaves’ da cidade.
Sendo ou não um reino, é fato inegável que, no Recife, houve ao menos um rei autoproclamado: o cantor Reginaldo Rossi. Rei do brega. A sua ‘cidade’, o seu ‘lugar’ – para repetir palavras de uma sua canção, “tem encantos mil”. O brega é, imaterialmente, um deles.
A ideia de tombar coisas imateriais foi adotada na prática pela Unesco em 2003, sob esta abrangência conceitual:
“O patrimônio cultural imaterial inclui as práticas, conhecimentos e expressões que as comunidades reconhecem como parte de sua identidade cultural, junto com os objetos e espaços associados. Transmitidos de geração a geração, este patrimônio se adapta com o tempo, reforçando a identidade e o respeito pela diversidade cultural. A convenção da Unesco de 2003 destaca a necessidade de salvaguardar estas expressões culturais para as gerações futuras”.
Portanto, a palavra-chave aí é identidade. Significa que, antes de pensar numa possível discussão estética, deve-se entender determinado patrimônio como estilo de vida, comportamento, mentalidade. Ou, de modo mais preciso ainda: o que a Câmara Municipal aprovou como patrimônio imaterial foi o “movimento brega”.
Uma comparação extrema: seria como se São Paulo resolvesse considerar patrimônio imaterial de sua cultura o movimento modernista. No Pará, que tomou a mesma decisão do Recife, apesar da abrangência maior – todo o estado – considera-se patrimônio imaterial não o ‘movimento’, mas algo específico: o ‘ritmo brega’.
Dando-se por aceita e reconhecida a existência de um ritmo musical qualificado de “brega”, caberia responder à pergunta primária: o que é o brega? Uma expressão do kitsch. O que é o kitsch? Para muitos, sinônimo do mau gosto. Mas o teórico Abraham Moles, considerava-o a arte da felicidade. Por causa do ‘conforto’ intrínseco e presente em sua manifestação. Um paradoxo do autenticamente falso numa arte sem inquietação nem desassossego algum.
O kitsch mostra-se ao mesmo tempo universal e difuso, e de fácil difusão (sem trocadilho). Enquanto o escritor paulista Mário de Andrade via “uma gota de sangue em cada poema”, o alemão Hermann Broch dizia que “há uma gota de kitsch em toda arte”. Sim, o kitsch está na arte, sem limitar-se a ela. Pode ser uma atitude, um comportamento, um pensamento, um sentido do gosto.
No âmbito artístico, insinua-se cada vez que se tenta agradar à plateia. Um elemento essencial do brega faz parte da tão discutida cordialidade brasileira: o sentimentalismo. Às vezes este é desadocicado com alguma dose de grotesco.
Denomina-se brega, atualmente, o que, antes, se chamava cafona. É o kitsch com jeitinho. Inclusive na linguagem. Certas frases que parecem sofisticadas, de autoajuda, assimiladas com entusiasmo pela multidão. Um grande estoque delas pode ser encontrado no inesgotável armazém da pseudofilosofia.
Brega, por excelência, tanto quanto a sabedoria karnalizada e cortellizada. O poeta antilírico e antibrega João Cabral de Melo Neto chegou a afirmar que o entusiasmo brasileiro pela retórica é de tal monta que até clube do dominó poderia ter um orador oficial.
Mesmo quem não consegue definir, pode sentir e reconhecer o brega. Embora às vezes seja difícil admitir, principalmente quando se trata de uma assimilação de classe ou alguém fingindo-se inteligente. De Fernando Pessoa a Fernando Mendes, o brega tem uma plasticidade e onipresença inegáveis. Alguém sem status de distinção canta “você não me ensinou a te esquecer”, ou “eu fico imaginando nós dois”. Não faltará quem xingue tal sentimentalismo de brega. Mas se quem entoa essas letras e melodias melosas for um Caetano Veloso merece o aplauso reverente.
Talvez a Bossa Nova tenha componentes bregas em volume muito maior do que admitamos. Ou seja, tão brega Fernando Pessoa a ponto de ficar na memória como música-chiclete, numa alma-clichê que não é pequena. Esse poeta português teve tantas máscaras que estaria à vontade num baile com Ana Vilela e Bráulio Bessa. A festa poderia muito bem ocorrer no castelo do Instituto Ricardo Brennand, máximo templo do kitsch que não ousa dizer o nome. Está localizado no Recife – capital orgulhosa do brega e do frevo. Mas poderia ter sido construído em qualquer outro lugar do Brasil, país tão do brega quanto do carnaval, do futebol, das lojas Havan – viva a liberdade aprisionada em estátua – ou na torre Eiffel… de Umuarama.
O Brasil não é só um ‘país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza’, é, naturalmente, brega. Para melhor ajustar-se à alma, ao caráter nacional, caberia assim reescrever a primeira frase do Retrato do Brasil, de Paulo Prado. Basta trocar o adjetivo ‘triste’: “Em uma terra radiosa, vive um povo brega”. Talvez seja essa uma das razões de tão constante prosperidade o tópico, sob a forma de autoestereótipo.
Num estudo publicado em Paris há quase uma década – O kitsch revisitado – Soraya Helena Abrão Batista Pinheiro nos remete ao século XIX. Lembrando dos burgueses ansiosos pelo status da aristocracia, sem se dispor a pagar caro por isso. Daí que muitos confundam o kitsh como coisa barata. A arte contemporânea pode desmentir.
Nela é muito frequente cair-se naquela trampa referida por Quevedo: “solo el necio confunde valor y precio”, Retomada, quase palavra a palavra, por Antonio Machado: “todo necio confunde valor y precio”. Lembra Batista Pinheiro que a originalidade e a qualidade dos materiais dos objetos artísticos foram deixados de lado. Mas, “a partir da década de 1960, quando foi positivamente apropriado e reintegrado em outros contextos artísticos”.
Sejamos deliberadamente redundantes e tautológicos. O kitsch nos vende o tempo inteiro a poesia poética e a arte artística. Não se estranhe, portanto, essa dupla distinção: de objeto vulgar e elevado ao status de arte. Ou, pode-se acrescentar, de patrimônio intangível e de museu.
Da arte de um Jeff Koons, que resume bem o quanto o brega que ele produz pode, melhor do que o recifense Romero Brito, ser um potente remédio contra alguns dos males dos tempos atuais:
“A infância é aquele momento em que você não tem dúvidas, em que tudo o que você precisa fazer é aceitar o mundo ao seu redor, viver com ele. O mundo ao seu redor, para simplesmente viver as coisas como elas são. É por isso que incorporo imagens desse mundo da juventude em meu trabalho, porque a arte é essa busca permanente para apagar a ansiedade.”
* Mario Helio Gomes de Lima é escritor, editor e superintendente de periódicos e projetos especiais da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE)
** A ilustração acima é um Redesenho do Novo Recife feito por Heráclito Veras encontrado originalmente aqui e licenciado pelo https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt