A história do teatro brasileiro mudou para sempre em 1986 quando Marília Pêra e Gerald Thomas assistiram despretensiosamente a uma comédia inglesa do gênero Penny Dreadful (“terror barato”, em tradução livre) chamada The Mystery of Irma Vap, escrita por Charles Ludlam.
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Encantada com a força do texto, Marília teve o estalo de que somente a dupla Ney Latorraca e Marco Nanini podia dar conta da montagem, que exigia a interpretação de oito personagens diferentes e 56 trocas de figurino. Ela não descansou até convencer os amigos a comprarem, com ela, os direitos da peça.
Recorde
Em novembro daquele ano, a peça O Mistério de Irma Vap estreou no Teatro Casa Grande, na Lagoa Rodrigo de Freitas, e, a partir de então, ficou 11 anos em cartaz. No célebre Guinness Book of Records, ostenta o título de espetáculo mais longevo com o mesmo elenco em cartaz.
Mais de uma década de catarse nas plateias do Brasil; mais de 3 milhões de pessoas viram a peça. Um sucesso que se deveu, em grande parte, à química irrepetível entre Nanini e Ney Latorraca, o mestre dos palcos e telas brasileiros, que saiu de cena nesta quinta-feira (26), aos 80 anos.
Adeus a Ney
O ator faleceu em decorrência de uma sepse pulmonar, consequência do agravamento de um câncer de próstata. O artista foi diagnosticado com a doença em 2019 e estava internado na Clínica São Vicente da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, desde o último dia 20, segundo o jornal O Globo.
Nascido em Santos, Antonio Ney Latorraca começou a carreira ainda criança como ator de radionovelas. A partir dos anos 1960, atuou em alguns dos maiores sucessos do teatro, como na lendária novela Beto Rockfeller (1968) e na histórica montagem de Hair (1970). Nos anos 1980 e 1990, marcou uma segunda geração com sua presença inesquecível na TV Pirata e na icônica novela Vamp. Um tempo em que tudo o que ele tocava virava sucesso.
Primeira vez no Guairão
Vou ter que confessar, ruborizado, que não vi Irma Vap com Ney e Nanini no teatro (acho que só eu não vi), mas pude assistir as duas históricas passagens dele pelo Festival de Curitiba, começando com a primeira montagem de uma peça do Festival de Curitiba no Teatro Guaíra, maior palco da cidade.
Criado em 1992, o Festival de Curitiba demorou três anos para chegar ao Guairão por uma questão de conjuntura política. Nascido ao mesmo tempo que a Ópera de Arame — teatro construído especialmente para a peça de abertura do primeiro festival —, o evento esperou três edições para “jogar no Maracanã” da cultura local.
E não foi qualquer peça, mas um espetáculo muito aguardado pela crítica especializada que havia vindo a Curitiba especialmente para vê-lo, pois reunia um dream team do teatro nacional da época.
O texto era de Otávio Frias Filho, que, apesar de sua posição como publisher do maior jornal do país — numa época em que os jornais eram muito importantes —, estava em uma trajetória ascendente como dramaturgo.
O texto Don Juan, uma adaptação da história do famoso conquistador, que, na versão de Frias, se chamava Tenório, um ginecologista envolvido com uma vasta galeria de tipos femininos. O ponto de partida era um incidente romântico que deixava o protagonista impotente.
Dream Team
No elenco, o personagem central era Ney Latorraca, que vinha de sucessos estrondosos no teatro (O Mistério de Irma Vap) e na TV com a novela Vamp.
Também faziam parte do elenco Fernanda Torres — que logo em seguida estaria nos cinemas com o filme Terra Estrangeira, um dos símbolos da retomada do cinema nacional.
Na direção, Gerald Thomas, grande nome da sua geração no teatro nacional após uma década de produções inovadoras, rumorosas e, muitas delas, geniais. Era uma peça que tinha tudo para dar certo, mas que não confirmou os melhores prognósticos.
O Exame
A julgar, pelo menos, pelos textos da crítica publicados nos jornais da época. A mais impiedosa delas, curiosamente, foi publicada na Folha de S. Paulo pelo articulista Nelson de Sá, que não poupou críticas, nem mesmo ao seu chefe.
“Don Juan” prometia uma reunião quase ideal, alimentava uma expectativa imensa, até que chegou o dia da estreia, sucessivamente adiada. A frustração, porém, foi proporcional à expectativa. Não parecia ter existido diálogo entre as partes, não havia liga. Autor, ator e diretor cederam, fizeram concessões, principalmente os dois primeiros, mas não aconteceu o encontro, a unidade esperada”, escreveu.
Minha lembrança, quase 30 anos depois é de certo exagero da crítica. E a cena inicial com Ney e Fernanda – um exame ginecológico bastante peculiar – ainda é bastante lembrada pelo público presente e faz parte da antologia do Festival de Curitiba.
Chão de Estrelas
Ney só voltou ao Festival em 2014, com a peça Entredentes, mais uma vez dirigido por Gerald Thomas, e com Edi Botelho e Maria de Lima no elenco. Uma peça bastante marcante do repertório de Thomas, que começava com um encontro entre “um islâmico radical e um judeu ortodoxo no Muro das Lamentações, em Jerusalém”, e, a partir daí, evoluía à tragicomédia.
Ney Latorraca interpretava a si mesmo e cantava no palco o clássico samba-canção Chão de Estrelas:
Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões
Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando a minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações
Foi a última vez que o vi e acho que não haveria texto mais apropriado para um gênio dos palcos que nasceu para brilhar
R.I.P. Ney Latorraca e obrigado por tudo!