Por Gabriel Costa, especial para o Fringe 

Quem faz uma cidade são seus personagens.

São pessoas que transformam o espaço urbano em algo maior além de argamassa, concreto e da fuligem acumulada nas janelas. O que seria do bairro sem o senhor sisudo que dá milhos aos pombos? Sem o padeiro, pronto a servir o pingado a quem passa — dos bêbados virados da madrugada aos trabalhadores que acabaram de levantar?

A fauna urbana é fascinante, pois dá vida à cidade e à rua e se torna parte do imaginário coletivo. E cada um de nós, sem perceber, também podemos ser o personagem de alguém, apenas por pegar a mesma linha de ônibus todos os dias.

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Mas há aqueles que são impossíveis de não perceber no meio da multidão. Como o “livreiro nômade” Richel de Aguiar e sua fiel companheira: a bicicleta azul equipada com duas caixas, uma à frente do banco do motorista e outra atrás, sempre abarrotadas de livros.

Ver o conjunto – Richel + bicicleta – em ação é cena usual para quem circula nos entornos da Alameda Prudente de Moraes, no centro de Curitiba. O extraordinário, em um mundo que despreza livros, é a forma como Richel os torna especiais.

O livreiro nômade que virou personagem do centro de Curitiba. Foto: Gabriel Costa

Sentado em um banquinho de praia em frente à sua casa, ele me explicava por que decidiu circular por aí, de bicicleta, a vender livros, enquanto éramos interrompidos por pessoas que passavam cumprimentando. Parecia mais uma cena numa cidade do interior do que no centro de uma metrópole.

É justamente daí que seu projeto brilha. Richel não é seu vendedor de livros padrão. Desde o nome, Livros Nômades, o projeto resgata hábitos que foram substituídos ao longo dos anos. E isso tudo não é por acaso.

A origem do nômade

Richel é de Joinville (SC), cidade onde montou seu primeiro negócio: uma barbearia em que já incentivava seus clientes a lerem.

“Eu atendia numa salinha separada da minha casa, só amigos próximos, uns três por dia. Já naquela época eu propunha: o corte custa tanto, mas se trouxer um livro, sai mais barato. Era uma forma de incentivar a leitura, porque eu já tinha vontade de fazer algo relacionado a livros, mesmo sem saber exatamente o quê. E deu certo: o pessoal começou a trazer exemplares, e assim fui montando uma bibliotecazinha no armário”, conta o livreiro.

Por lá viveu até a pandemia de COVID-19, quando fez uma grande revolução em sua vida. Se mudou para um sítio em Salto do Lontra, no sudoeste do Paraná. “Eu levei alguns dos meus melhores livros, com tempo à disposição pra poder estudar eles. Eu li 60 livros lá, em um ano e três meses”, disse.

Com uma bicicleta azul cheia de livros, Richel de Aguiar transforma a rotina em cultura viva. Foto: reprodução

Além de plantar o que comia e ler livros que queria, o lugar era um verdadeiro refúgio espiritual e Richel conta que ficou mais introspectivo do que já era.

“Foi um período de muito preparo. Eu li muito e fiquei em contato direto com a natureza — não havia vizinhança, quase nenhum humano para conversar, só meu sogro, minha sogra, minha esposa e meu filho. O resto era bicho, era mata, era silêncio. E, claro, nós também fazemos parte da natureza, somos fruto dela. Mas viver entre árvores, trilhas e essa tranquilidade toda me despertou uma necessidade enorme de compartilhar conhecimento.”

Foi nesse contexto que surgiu a oportunidade de se mudar para Curitiba, em 2021, mais especificamente para a Alameda Prudente de Moraes, importante rua gastronômica e boêmia da cidade, que percebeu ser um ambiente perfeito para suas pretensões.

Inicialmente, ele tinha o desejo de trabalhar com música, mas já considerava a possibilidade de fazer dos livros seu grande objetivo, fosse em um sebo ou em um negócio próprio.

“Eu já tinha essa ideia de vender livros de forma ambulante, sabe? Essa vontade de trabalhar com sebo, mas também ter autonomia — isso sempre fez parte da minha filosofia”, conta Richel.

Quando o questionei sobre o motivo de ter escolhido a bicicleta como a “cara” do negócio, fui surpreendido pela resposta. Antes de adotar o veículo de duas rodas, Richel vendia livros de forma ambulante, carregando uma mochila que lhe causava dor nas costas — e desconfiança nos outros.

“A pessoa ficava com medo quando eu ia tirar um livro da mochila. Achava que eu ia puxar uma arma, sei lá. O cara não me conhece, né? Aí não deu boa. Então adaptamos para a bicicleta. A ideia veio daí, e deu certo desde o começo. Eu coloquei uma caixinha bem pequena, cabia uns 20 ou 30 livros. Pequenininha mesmo.”

E Richel é fiel à sua bicicleta, da mesma maneira que ela sempre o ajudou. “É a mesma bicicleta desde o começo. A gente alugou num projeto que tinha na Bicicletaria Cultural”, conta.

E o que o nômade gosta de ler?

Enquanto leitor, Richel é daqueles que gostam de se debruçar sobre obras filosóficas que exigem tempo, dedicação e atenção. Identificado com o pensamento absurdista, valoriza o momento presente e busca sempre estar em contato com a natureza.

A obra do alemão Nietzsche é seu grande objeto de estudo — seu autor favorito. Já leu Assim Falou Zaratustra três vezes e admira a forma como Nietzsche combina uma linguagem esteticamente bela com verdades duras sobre a existência.

“Ele é muito visceral, muito forte, com um pensamento existencialista profundo e uma estética bela, às vezes até clássica. É irônico, conversa com a gente, sabe? Dá aquela sensação de que você está vivo ali, lendo. Gosto disso. Tem uma profundidade que atravessa — filosófica no conteúdo, mas com uma beleza na forma. Isso me pega”, declara.

Hoje, relata que consegue ler em média 1 livro por semana. Em sua casa, no meio de centenas de obras que vende em seu sebo ambulante, tem um montinho daqueles que está lendo no momento. Quando o visitei, havia uma meia dúzia, com conteúdos variados — de filosofia a física.

Essa mistura que permite a Richel conversar com os mais diversos públicos sobre os mais variados assuntos na rua, uma forma de fazer cada pessoa se sentir especial. Se você, mais do que ler, busca alguém com quem podemos discutir o que leu, o livreiro nômade é essa pessoa.

Há algo reconfortante na ideia de que, no trajeto para o trabalho, você pode encontrar alguém disposto a um papo despretensioso, a conversar sobre livros e sobre a vida.

No centro da cidade, o livreiro cumpre um papel essencial ao trazer uma ação cultural que rompe a paisagem habitual de prédios e mais prédios. Mesmo vivendo em Curitiba há pouco tempo, o livreiro nômade Richel já aparece como um dos mais memoráveis personagens urbanos da cidade. Palmas para ele, que ele merece!

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