Numa tarde de muita chuva no verão de 1997, assistia, com um amigo, a uma sessão das 15h do grande filme Estrada Perdida, de David Lynch, no Cine Guarani, em Curitiba. Éramos “aproximadamente duas pessoas” vendo um dos grandes filmes daquela década, especialmente fecunda para o cinema mundial.

Leia Também + Como o Festival de Curitiba antecipou o Big Brother 

A sequência de abertura ao som da pedrada I’m Deranged, de David Bowie, é uma das cenas da minha antologia pessoal. Naquele mesmo ano vi Bowie cantando-a ao vivo. Bons tempos.

Durante a sessão, num momento de grande tensão da trama, houve um apagão de energia (eram comuns naqueles tempos). As luzes se apagaram e, nesse exato instante, um maluco entrou gritando na sala. Pânico fascinado.

Seria um truque extremo do mestre Lynch? Um ataque de assassino em série — que também estavam na moda — ou apenas mais um episódio da pornochanchada urbana. Bem, a luz voltou, o invasor calou-se e sumiu, o filme terminou, e aquele foi um dia fundamental. O que aconteceu depois que saí daquela sessão mudou minha história para sempre. Mas David Lynch, que morreu hoje aos 78 anos, já havia feito isso antes.

Ele foi o mais original artista da minha arte preferida no período que vai da minha descoberta do cinema, na infância, nos anos 1980, até este estranho estado de silêncio da maturidade, que certamente antecede algum tipo de estrondo nos próximos anos. Este vídeo do Mubi explica muita coisa:

Gosto de absolutamente todos os seus filmes. E das séries e de seus projetos de literatura e vídeo. Gosto de acreditar que vivo, às vezes, dentro do país que ele inventou, onde vigem regras de um onírico surrealismo. E só quem também é dessa enfermaria consegue me enxergar completamente.

No hay banda! It’s all a tape. Il n’est pas de orquestra. É tudo ilusão.

Lembro que, no final da primeira década deste século, o grande cineasta começou, pelo Brasil, uma cruzada para incluir a meditação transcendental no currículo das escolas públicas. Cheguei a escrever sobre isso à época.

Era uma grande ideia que, acredito, teria nos poupado de boa parte dos problemas atuais da República. Apesar disso, eu mesmo nunca consegui alcançar a meditação, embora tenha tentado algumas vezes por influência dele.

O que vou fazer mesmo é rever uns cinco ou seis filmes de Lynch nesta noite de verão com previsão de muita chuva.

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Compartilhar.

Sandro Moser é jornalista e escritor.

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

wpDiscuz
0
0
Deixe seu comentáriox
Sair da versão mobile