Além de pintor, desenhista, escultor e renomado paisagista brasileiro do século 20, Roberto Burle Marx (1909-1994) tem ainda uma faceta pouco conhecida no meio artístico: a de tapeceiro. “Com um acervo de cerca de 50 peças, o artista marcou os cenários nacional e internacional da tapeçaria moderna”, destaca o pesquisador Guilherme Dourado em entrevista ao Jornal da USP. Em busca de explorar as manifestações de Burle Marx na arte têxtil, Dourado escreveu o livro Burle Marx Tapeceiro (Luste Editores) – primeira obra dedicada exclusivamente às tapeçarias do artista.

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Arquiteto e historiador de paisagismo, arquitetura e artes visuais, Dourado é também veterano no estudo das atividades profissionais de Burle Marx. Sua pesquisa sobre o paisagista teve início em 1991, quando fez uma matéria especial sobre o artista para a revista PROJETO, da qual era ensaísta e articulista. Após mestrado (2000) e doutorado (2009) pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, o pesquisador se dedicou à análise do arquivo de cartas e correspondências de Burle Marx em seu pós-doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (2016).

Ícone do paisagismo e da tapeçaria moderna

Nascido em São Paulo em 1909, Roberto Burle Marx passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Entre 1928 e 1929, viajou à Alemanha com sua família, onde entrou em contato com vanguardas artísticas que marcariam sua obra – como a arte abstrata e o construtivismo – e se interessou pela vegetação brasileira guardada pelo Jardim Botânico de Berlim. Ainda visitou exposições de artistas como Pablo Picasso e Vincent Van Gogh, além de estudar desenho no ateliê de Elise Degner Klemn. De volta à então capital federal em 1930, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, atual Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na academia, estudou pintura e foi contemporâneo de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

“Burle Marx tem uma obra muito extensa no paisagismo, sua principal atividade ao longo de quase sete décadas. Foi pioneiro ao valorizar plantas tropicais e a vegetação nativa, sendo até hoje reconhecido internacionalmente”, disse Dourado.

Desde os seus primeiros trabalhos, como o projeto do jardim do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, até as obras que sinalizam o auge de sua carreira, como o planejamento do Parque do Flamengo, Burle Marx se consagrou como um dos mais prestigiados paisagistas brasileiros. Apesar do reconhecido talento do artista no manejo de plantas e materiais botânicos, o autor garante que a técnica e a excelência de Burle Marx se mantêm em sua produção de tapeçarias.

 

Dourado se deparou com a arte têxtil de Burle Marx ao consultar o acervo digital de jornais da Biblioteca Nacional, no qual encontrou o nome do artista em destaque em meio a uma série de reportagens sobre tapeçarias dos anos 1950. Foi nessa década que o paisagista iniciou sua carreira no segmento têxtil, a partir de peça encomendada pelo empresário brasileiro Ernesto Waller e enviada para tecelagem na cidade de Aubusson, na França. Ainda assim, o fascínio de Burle Marx por fazer arte sobre as paredes já existia desde o final da década de 1940, como conta o pesquisador em trecho do livro: “o interesse do artista direcionado às obras parietais de maior dimensão e, portanto, com escalas distintas da pintura de cavalete que até então praticava, alçou voo com a elaboração de murais em cerâmica, em mosaico de pastilhas de vidro ou afresco, numa fase inicial”.

Em meados do século 20, colecionadores e museus brasileiros cultivaram uma crescente onda de interesse por tapeçarias modernas confeccionadas nos ateliês têxteis de Aubusson, o que levou Burle Marx a escolher o local para a encomenda de Waller. Na época, a grande imprensa brasileira noticiou que, pela primeira vez, as tradicionais manufaturas da cidade francesa atendiam a uma proposta elaborada por um artista nacional. Os anos de 1952 a 1955 foram marcados por uma sequência de exposições sobre tapeçaria moderna no Brasil, com obras de artistas como Jean Lurçat, Dom Robert e Marc Saint-Saëns. Em mostra retrospectiva de Jean Lurçat no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) em 1954, Burle Marx e o pintor francês se conheceram pessoalmente. No mesmo ano, dez cidades norte-americanas receberam a primeira exposição internacional sobre a obra do artista.

Da entrada em Brasília ao 8 de janeiro

No livro, Dourado destaca Brasília como palco do ápice da atividade tapeceira de Burle Marx. Seu ingresso na cena artística da nova capital do País se deu a partir do paisagismo, devido à estratégica difusão internacional de uma nova imagem do Brasil vinculada à arte e à arquitetura moderna durante a década de 1950. Impulsionado por Wladimir do Amaral Murtinho, então conselheiro do Ministério das Relações Exteriores (1958-1959), Burle Marx projetou os jardins internos e externos do Palácio Itamaraty. “Essa é a fase mais madura da carreira do artista, já que ele consegue ter trabalhos com escala muito representativa em Brasília”, comenta o pesquisador.

 

A atuação de Burle Marx na nova sede da diplomacia brasileira lhe garantiu conceituada reputação artística, de modo a também abrir caminhos para seus trabalhos como tapeceiro. “Em 1965, ele fez uma grande tapeçaria para o salão de banquetes do Itamaraty e outra para a residência oficial do ministro das Relações Exteriores, em Brasília. Depois, em 1973, projetou uma peça para o Salão Negro do Congresso Nacional”, conta Dourado. Com estudos detalhados, pinturas preparatórias e execução cuidadosa, o primeiro projeto destacou-se como uma das mais significativas da arte têxtil brasileira, tanto pelas dimensões – 4,2 metros de altura por 5,2 m de largura por peça, totalizando cinco peças – como pela expressão plástica.

“Creio que os resultados são positivos e há qualidades maravilhosas. Foi um grande esforço que despendi, pois pintei-os todos aqui, no ateliê, num espaço exíguo e, apesar disso, eles se ligam entre si e, se houver bons artesãos, poderão adquirir qualidades ainda maiores.”

Em 1973, Burle Marx emplacou no Salão Negro do Congresso Nacional outra peça que seria um marco da sua atividade tapeceira. Hoje, essa prestigiada tapeçaria encontra-se no acervo do Museu do Senado. No entanto, o episódio de 8 de janeiro de 2023, quando manifestantes de extrema-direita invadiram e vandalizaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF), implicou também diversos prejuízos para a obra. “Essa foi uma das primeiras obras atacadas pelos vândalos. Eles arrancaram violentamente a tapeçaria da parede, o que provocou um corte horizontal acima da assinatura do artista, pisaram nela, jogaram pó de extintor de incêndio e ainda urinaram sobre ela”, relata Dourado.

Após os ataques, a obra passou por um processo de restauração que durou três meses. Na primeira etapa, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), em São Paulo, conduziu uma operação de retirada de agentes biológicos e substâncias químicas que infectaram a tapeçaria. Já na fase seguinte, a equipe do Atelier Raul Carvalho Conservação e Restauro de Obras de Arte, também na capital paulista, higienizou a obra, costurou o rasgo e aplicou um forro no verso para dar mais estabilidade à peça. O pesquisador aponta que, embora a tapeçaria já esteja recuperada e novamente exposta no Salão Negro do Congresso, “nenhuma obra voltou a ficar como era antes da vandalização. Eu vejo como um ataque à cultura brasileira, não só à arte de Burle Marx”.

Tapeceiro

No último capítulo do livro, Dourado destaca especialmente a parceria entre Burle Marx e Clemente Gomes (1922-1993), então gerente da Indústria de Trabalhos Manuais (ITM) – empresa de São José dos Campos, em São Paulo, responsável pela confecção de mais de 20 tapeçarias projetadas pelo artista. “O industrial [Clemente Gomes] foi um dos clientes com mais trânsito e intimidade junto ao artista, responsável por lhe proporcionar uma quantidade impressionante e variada de trabalhos, numa atitude sem paralelos em comparação a outros empresários de peso que recorreram aos talentos de Burle Marx […]”, conforme detalha trecho da obra.

Diversos trabalhos resultantes da parceria entre o artista e o empresário pertencem a significativas coleções públicas e particulares no país e no exterior, como duas tapeçarias de 1971 que, hoje, integram a coleção do The Art Institute of Chicago, nos Estados Unidos. Há também a renomada peça que Burle Marx projetou para o Centro Cívico de Santo André, exposta em 1973 na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e no Museu Galliera, em Paris. Após o falecimento de Burle Marx, em 1994, esse painel têxtil foi ainda mais valorizado, participando das exposições comemorativas do centenário de nascimento do artista no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, e no Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 2008 e 2009.

Mesmo que o trabalho de Burle Marx seja reconhecido mundialmente e tenha protagonizado tendências artísticas, Dourado destaca a ausência de novos artistas da tapeçaria moderna. “Trabalhar com esses teares verticais de alto liço é algo que exige tempo, estrutura e precisa ser feito com ateliês profissionais. Vejo os jovens artistas se interessarem por tapeçarias em formatos menores, já que é mais complexo desenhar o projeto e realmente executar nesses teares grandes”, comenta o autor. Ainda assim, ele espera que Burle Marx Tapeceiro desperte discussões em torno da tapeçaria de Burle Marx, além de provocar interesse pela produção têxtil em novos artistas.

Por Mirela Costa do Jornal da USP

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