“Quem procura o que não perdeu, quando acha, não reconhece”, dizia Mestre Marçal. Quem com ele conviveu afirmava que Nilton Delfino Marçal (1930-1994) não foi apenas “o” grande diretor de bateria de escolas de samba de seu tempo, mas também um invulgar criador de aforismos da sabedoria popular brasileira. Mestre Marçal tinha o wit.
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Era descendente direto de um dos fundadores do que, até hoje, chamamos de samba. Seu pai, Armando Vieira Marçal (1902-1947), também grande ritmista, foi fundador da Recreio de Ramos (embrião da Imperatriz Leopoldinense) e parceiro de Bide em sambas marcantes como Agora É Cinza e A Primeira Vez.
Mestre Marçal herdou as qualidades do pai e incorporou outras tantas, a ponto de Ricardo Cravo Albin já o ter chamado de “maestro de timbres inauditos (…) senhor das misteriosas afinações de ganzás, cuícas, tamborins e surdos”. Não há disco de música popular brasileira relevante, entre meados dos anos 1960 e o final dos 1980, que não tenha Mestre Marçal na ficha técnica.
Sua batuta liderou a bateria Portela por 20 anos até que, numa peculiar tradição portelense, brigou com os mandatários de turno e acabou se afastando da escola. O episódio de seu recrutamento para a azul e branco de Oswaldo Cruz é curioso, conforme narra Luiz Fernando Vianna:
“Marçal era um inovador. Nos anos 1960, decidiu tocar tímpano — um instrumento de orquestra — no Império Serrano. Consta que Natal, o poderoso bicheiro de um braço só da Portela, ao ver a cena em um dos desfiles, disse: ‘Esse aí ainda vai me fazer perder um Carnaval!’. E levou Marçal para sua escola”.
Mestre Marçal também teve uma carreira brilhante como cantor. Ao microfone, fazia um samba de divisão sincopada, minimalista, aquele tipo de canto teatral, declamado, como de quem puxa a banqueta no bar para te contar uma história e que os franceses chamam de nonchalance.
Se a onça morrer…
Também era o rei da frase de efeito. Um de seus maiores parceiros de batucada, Wilson das Neves, que também trocou as baquetas pelo microfone e se tornou um grande cantor de sambas, compilou alguns de seus pensamentos na faixa Mestre Marçal, composta com Trambique e Paulo César Pinheiro. “Se alguém me bancar, eu sei me vestir. Só me falta roupa, yayá” ou “Vou levando do jeito que eu posso, pois, se a onça morrer, o mato é nosso.”
Mestre Marçal deixou um herdeiro no mesmo ofício: Mestre Marçalzinho. E desde sua morte, há mais de 30 anos, é para os diretores de bateria de todas as escolas de samba o que Jamelão foi para os intérpretes que pensam assim: se a gente chegar perto do que ele fazia, já tá bom.