Numa das vezes em que falou com o público da Ópera de Arame, na última sexta-feira (11), em Curitiba, Esteban, um dos Hermanos Gutiérrez, contou que ele e o caçula Alejandro criaram seus primeiros temas quando ainda moravam na Suíça, mas se imaginavam viajando pela Rota do Sol, a estrada andina que liga o Peru ao Equador.
Esteban lembrou que eles, anos depois, de fato viajaram por esta ruta na caminhonete Ford que está na capa do álbum El camino de mi alma (lançado em 2018 e o mais ouvido na pandemia aqui em casa) e que a música que eles imaginaram ficou muito parecida com a que eles lá encontraram.
Enquanto eles executavam a faixa título, me peguei pensando sobre como o papel do artista não é outro que criar mundos e, corajosa e generosamente, convidar pessoas que não conhece a viajarem por ele. E a música do duo suíço-equatoriano é viajandona, em todos os sentidos da expressão meio cringe.
A começar pelo equipamento que usam no palco e cabe fácil na caçamba da Ford: três guitarras (uma slide), um banjo, alguns instrumentos de percussão, meia dúzia de pedais, dois amplis e um PA. Dá pra rodar o mundo sem problemas como eles estão fazendo.
O som dos irmãos também é perfeito para deslocamentos territoriais a pé, de carro, de trem, moto, ou seja, como for. Seus temas são paisagens de som que conversam com os mares de cores e desertos de luz e praias infinitas e mais florestas, cidades, pampas, planícies, montanhas e salares sobre os quais eles nos falam sem usar palavras.
A terceira é a viagem essencial para o dentro profundo, psilocibínica, e que vai por uma estrada sem mapa e mais difícil de encontrar. É para dentro dessa que a música deles não cansa de nos instigar a entrar. Viagem para fazer sem bagagem, sem pensar nas fronteiras.
Música que muitas vezes se ouve de olhos fechados. Mergulho em cachoeira desconhecida. Tem mais a ver com música cósmica da Gota, na Chapada dos Veadeiros, do que com uma lúbrica balada de deslumbrados numa capital brasileira.
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Uma música que precisa ser ouvida. Parece óbvio, mas não é.
Em sua versão original, antes das exibições de 2001 – Uma odisseia no Espaço, o diretor Stanley Kubrick exibia uma tela preta por 2 minutos e 58 segundos ao som da peça orquestral Atmosferas do compositor contemporâneo George Ligeti. Era a estratégia para fazer o público acertar o passo com a frequência e o ritmo do filme e preparando-o para o que viria.
Me inclino a acreditar que precisamos pensar em algo parecido para shows intimistas como o dos Hermanos Gutiérrez, mais um dos grandes concertos que a formidável gig Curitiba Jazz Sessions trouxe, como já havia trazido Kamasi Washington e outros nomes de muito talento e em pleno voo no espaço da melhor música internacional.
Pois não foi muito fácil subir na caminhonete de Esteban e Alejandro em meio ao alarido tagarela e ensurdecedor de quem, ignorando a arte invulgar no palco, preferia falar e fazer pose. Nada contra, eu mesmo tenho amigos que adoram falar bastante, mas parece que é impossível ficar perto de uma hora falando apenas o essencial para pedir licença, comprar uma cerveja ou comentar um detalhe no ouvido do parceiro de um show sonoramente minimalista.
Curiosamente, neste e em todos os casos, quem mais fala é quem tem menos a dizer. E o assunto é o próprio rabo. “Eu fiz isso.” “Eu fui na academia.” “Meu carro é assim.” Além disso, havia outra banda no evento no mesmo complexo cujo som vazava para dentro da Opera. Muito “eu” e muito barulho para pouco cosmos que é para onde os Gutiérrez queriam nos levar com seu sonido.
Tive a sorte de conviver com a decana da minha profissão, Rosy de Sá Cardoso, que me contou que, no final dos anos 1930, quem abrisse um pacote de jujubas de forma escandalosa no cinema era proscrito pela comunidade por atrapalhar a experiência coletiva da fruição da arte. Eram mesmo outros tempos.
Mas desde sempre a arte serve para reinventar o tempo e a conversa para matá-lo deliciosamente, e ambas têm seu tempo. Mas esse papo soa uma vez mais cringe (rima com Fringe) e meio autoritário ao querer ensinar como os outros devem viver e proceder — e assim eu paro por aqui.
Voltando para a música, preciso antes citar Umberto Eco que dizia com razão que “um livro é sempre sobre outro livro”. Pois uma música também é sempre sobre outra. Quase impossível criar algo genuinamente novo entre o céu e a terra, dada a limitação matricial das notas e o tempo em que elas já têm sido usadas. A grande sacada está na possibilidade — esta sim infinita — de união e organização de referências artísticas, sensoriais e intuitivas para criar peças únicas. Nisso os Hermanos Gutiérrez são imbatíveis.
Pois os irmãos misturam um tanto de tudo que mais gostamos: das trilhas sonoras dos faroestes italianos ao ritmo dos bailes da cordilheira andina. Do violão brasileiro de Dilermando Reis ao folk americano, chegando às fogueiras que se fazem depois de escalar alguma montanha na Serra da Melança. Unem o indie rock de suas adolescências com a psicodelia amazônica de seus ancestrais e muito mais em temas que, como os bons poemas e as canções punk, sabem a hora de terminar.
No palco, são personagens gentis que gostam de reafirmar o amor pela música e demonstrar admiração recíproca. Tanto que soa até exagerada para quem já trabalhou algum dia com o próprio irmão. Como músicos, são foras de série, mas sem usar a chata carta do virtuosismo. Esteban e Alejandro são, no fundo, cenógrafos de paisagens musicais exuberantes. Fazem um show sensorial, hipnótico e elegante, e do público só pedem a arte de se deixar levar.
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