Por Gabriel Costa, especial para o Fringe

Em 2009, o sociólogo Jessé Souza cunhou o termo “ralé” para se referir a uma classe brasileira estruturalmente desfavorecida, cujos membros enfrentam desafios como baixa escolaridade, falta de acesso a serviços básicos e ausência de oportunidades de desenvolvimento. Ser da ralé é ser invisível para a sociedade. Cabe a eles tentar viver as próprias vidas sem ajuda do Estado e das demais classes do país.

O filme A Melhor Mãe do Mundo, de Anna Muylaert — diretora de Que Horas Ela Volta? —, conta uma história típica da ralé brasileira. Gal, interpretada por Shirley Cruz, é uma catadora de lixo que apanha do marido Leandro e tenta fugir de casa com os dois filhos para viver uma vida um pouco menos difícil.

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Mas, além do carrinho, Gal pouco possui. O que sobra para ela é tentar maquiar a situação para seus filhos e para si mesma. Em uma jornada que mescla ficção e realidade, a família atravessa as ruas de São Paulo na tentativa de chegar a um oásis em meio à selva de pedra. É aí que mora uma das grandes qualidades do filme de Muylaert: A Melhor Mãe do Mundo é uma obra profundamente urbana.

Cena de ‘A melhor Mãe do Mundo”. Foto: divulgação

Para ficcionar a situação aos filhos, Gal não poupa esforços. Logo no começo do filme, é perceptível a importância do futebol. Há Corinthians por toda parte, e não necessariamente por causa do esporte. Neste caso, ele funciona como uma forma de esperança, um motivo para continuar. E sua arena, um objetivo final, como se tudo fosse dar certo quando a enxergassem.

Por várias vezes, Muylaert posiciona a câmera de frente ao carrinho, enquanto Gal o arrasta com os filhos em cima. Tal artifício, combinado com a atuação propositalmente exagerada de Shirley Cruz, faz os personagens se tornarem mais do que são. A mise-en-scène do filme ajuda a potencializar a sensação de que a família é parte inseparável daquela paisagem paulistana, mesmo que, na verdade, não pertença àquela sociedade. Afinal, não deixam de ser ralé para os outros.

Uma crítica comum a filmes do tipo é que estariam espetacularizando a pobreza. De fato, em A Melhor Mãe do Mundo, a composição das cenas é bela, e Gal se torna uma heroína. Mas Muylaert nunca deixa de mostrar a sujeira a que estão expostos — seja material ou humana. Ao longo do caminho, a mãe sofre uma tentativa de abuso. E a maneira como se combinam a realidade da situação, aos olhos da catadora, com a ingenuidade dos filhos, nos permite ver dois lados da mesma história.

O objetivo de Gal é chegar à casa de sua prima, do outro lado da cidade. Para isso, precisa dormir na rua por alguns dias. Neste momento, para ela, pouco importa o que esteja sentindo — o importante é fazer os filhos perceberem tudo como uma grande aventura. E, como toda jornada do herói, ela encontra companheiros pelo caminho.

Em uma das noites na rua, a família cruza com Munda, uma cadeirante que vende itens dos times de futebol de São Paulo. Em uma conversa franca, ela decide dar a Gal seu número de telefone, caso precise de alguma ajuda. A mensagem de Muylaert é clara: a ralé só tem a si mesma.

A São Paulo do filme é caótica, barulhenta e perigosa. Nunca se sabe o que pode vir na próxima esquina — seja um carro, alguém mal-intencionado ou até mesmo Leandro, que funciona como uma presença assustadora ao longo de todo o filme. Seu Jorge entrega uma interpretação muito boa.

Foto: divulgação

Ao chegar à casa da prima, o clima muda. A trilha sonora pesada dá lugar a um samba de altíssima qualidade, e as crianças finalmente sentem uma sensação de segurança. Até então, mesmo com os esforços da mãe, ainda havia dúvidas em relação à “aventura”. Mas é nesse momento que Muylaert decide fazer uma crítica ao que muitos chamam de pacto da masculinidade.

O marido da prima não enxerga as ações de Leandro como erradas — ele é apenas um homem, agindo como tal. Por isso, decide convidá-lo para o churrasco da família.

A presença de Leandro é um susto para todos. O samba “morre”, as crianças trocam os sorrisos por dúvidas, e Gal sente que toda a sua “aventura” foi jogada no lixo.

Em meio a esse cenário, como tantas outras mulheres, Gal se sente obrigada a dar uma chance ao homem. “Ele vai mudar”, ou “ele é assim mesmo”, e até “ele me bate, mas me ama” são frases comuns de se ouvir. Mas, em A Melhor Mãe do Mundo, Muylaert deixa claro: violência não se cura com esperança. E, a partir disso, tenta mostrar um outro lado, que muitas vítimas não conseguem enxergar.

O filme é uma espécie de conto de fadas urbano em plena São Paulo. Após fugirem novamente de casa, a família começa a ouvir fogos de artifício. Um rádio anuncia: é dia de Corinthians. Desiludidos, sentam-se no meio-fio, à espera de um milagre — que vem. Um homem, montado em um cavalo branco — como São Jorge, padroeiro do clube — decide levá-los à Arena.

A partir disso, é possível tirar duas conclusões: na vida real, a ralé não tem essa sorte. E a Arena é lugar de quem tem dinheiro para ver o jogo. Mas o que é o cinema, senão um palco para sonhar? Muylaert não engana sua audiência, apenas oferece a Gal, como personagem, um momento de alívio.

Mas não é na Arena que está o oásis da família. Nas últimas cenas, temos a volta de Munda, apresentando a eles um quartinho em um prédio. Logo fica claro: aquilo é uma ocupação. Em um Brasil que demoniza movimentos como o MST, A Melhor Mãe do Mundo vai na contramão. Afinal, são lugares como esses que ainda oferecem dignidade para muita gente.

A história de muitas mulheres termina na volta do marido, na “passada de pano” de um familiar. Mas não é isso que Muylaert quis retratar em seu filme. Ela escolheu contar um conto de fadas urbano, sujo e impossível — e ela provavelmente sabe disso. Mas a mensagem final é digna de aplausos: não há nada como pertencer. E nem sempre sua família é quem vai te oferecer isso.

A ralé de Jessé Souza é a mesma de Anna Muylaert — e perceber isso é um passo importantíssimo para não ver o filme como um espetáculo da pobreza.

‘A melhor mãe do mundo” teve estreia nacional no último Cine PE, no qual recebeu os prêmios como melhor longa metragem pelo júri oficial, além de melhores roteiro, atriz para Shirley Cruz e atriz coadjuvante para Rejane Farias.  O filme chega aos cinemas no dia 7 de agosto. 
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