Imaginem que a Terra está prestes a ser obliterada por uma implacável alienígena que
decide punir toda a humanidade pela sua mesquinhez, sede de poder e truculência cujos
malefícios adoeceram todo o planeta. Uma bomba nuclear (Oppenheimer perto disso
inventou um estalinho) dará cabo de nossas miseráveis vidinhas em pouquíssimo tempo.
O Juízo Final se aproxima, o tic-tac do relógio gradualmente nos empurra para o
precipício e já começamos a ouvir as trombetas do além. Eis que, saído ninguém sabe
d’onde, surge aquele que irá nos salvar dessa tão terrível ameaça. Entretanto, o
providencial defensor não é exatamente um combatente ou um semideus sublime. Longe
disso. Para nossa sorte ou azar, o salvador é um bufão. Depositamos nele a esperança.

Ao analisar as várias faces da figura heroica, o estudioso Joseph Campbell lista um sem
número de possibilidades: guerreiro, santo, imperador, amante etc. Mas um palhaço
heroicizado é realmente um ponto fora da curva. Este herói (ou anti-herói), tão incomum,
não enaltece ou protege nossas qualidades, ao contrário, ele nos bota para rebolar até o
chão, revela nossas fragilidades, contrassensos e hipocrisias, como a criança atrevida que
grita a plenos pulmões: “o rei está nu!”, dando a ver como certas convenções sociais são
arbitrárias, risíveis. Num divertido paradoxo, é justamente ao escancarar nossas falências,
pelo riso ferino e reflexivo, que o protetor clownesco nos dá a possibilidade de repensar
nossos atos. Encarar a vida político-social, perspectivando-a pelas lentes da comicidade,
é uma possibilidade de desnaturalizar o sentido e o fluxo das coisas. Rir diante do perigo
pode ser inconsequente, mas também um sopro de energia para nos fazer esquivar dos
supostos determinismos inelutáveis, que tentam aprisionar nossas possibilidades de
reinvenção. A alegria é também uma tecnologia de enfrentamento.

Laborioso Contato, da Trupe Motim (CE), realiza este gesto saborosamente hilário:
projetar um palhaço como representante torto de uma humanidade também ela torta.
Chico Henrique encarna, com brilho, esta missão, construindo uma personagem eivada
de sarcasmo e malícia, ágil na observação do mundo, sempre pronto a nos deliciar com
sua acidez mordente. Uma das características do bufão, em toda a sua estranha vitalidade,
é abordar assuntos graves em tom de brincadeira, e assuntos comezinhos em tom sério,
não apenas dessacralizando as convenções, comportamentos e etiquetas, mas igualmente
materializando uma radical ironia diante do mundo. Isso o faz ecoar uma gargalhada que
desconfia de tudo o que está dado, convidando-nos a olhar para nossas ações e vícios
como se fosse pela primeira vez. Em um palco totalmente vazio, o palhaço tira sarro do
poder, os seus alvos são as hierarquias e as opressões sociais do Brasil e do mundo. As
crises climáticas, o conservadorismo desenfreado, as violências de classe, raça e gênero
são atacadas com uma comicidade ao mesmo tempo exacerbada e consciente de seu papel
político. Numa nação que já produziu o ET Bilu e o bolsonarismo insensato, para citarmos
dois bizarros fenômenos achincalhados por Chico Henrique, a encenação nos mostra que
absurdo e grotesco não é tanto o palhaço, mas todo um país.

A montagem se assenta grandemente nas interações com o público. Do início ao fim o
palhaço não perde de vista os humores, as reações e as derrapadas de sua plateia, ora
atuando como um regente dos nossos aplausos, ora convocando espectadores a partilhar
com ele o palco. Nesse sentido, Chico exala um vívido estado de disponibilidade para
captar o momento singular da apresentação. Nada lhe passa desapercebido, desde os
quatro espectadores atrasados, que logo são transformados nos Trapalhões, ou a cabeleira
grisalha de um senhor, que segundo o bufão, já vivenciou incontáveis apocalipses. As
suas intervenções são carregadas de pimenta sem destroçar a dignidade de ninguém. Mas
ele também não pede desculpas, pois direta e indiretamente assume a natureza brincante
de seu trabalho. É um jogo arriscado e prazeroso, como são os jogos. Da mesma maneira,
o senso de disponibilidade do artista se manifesta também no modo como ele capta os
absurdos políticos do nosso presente, como a megalomania risível e perigosa de um Elon
Musk ou o fanatismo dos bolsonaristas que invocam OVNIS pelas lanternas de seus
celulares. De uma forma ou de outra, é impressionante a capacidade que os palhaços têm
de nos apanhar sempre com “as calças na mão”, anunciando, para quem quiser ouvir,
nossos embaraços e incongruências. A enorme plateia nas Ruínas de São Francisco se
entregou totalmente à inteligente loucura do bufão, expressa em piadas, zombarias e
versos.

O ator é rápido nas tiradas e simultaneamente cuidadoso na manipulação dos seus
elementos de cena. Ele respeita o tempo das coisas, o momento e o contorno particulares
de cada objeto. Uma das grandes preciosidades do teatro de objetos não é entulhar o palco
com uma parafernália infindável, mas convidar-nos a apurar o olhar para a forma das
coisas, o seu desenho, a sua imagem singular, o tempo-espaço contido na pequenez ou na
imensidade de cada matéria no mundo. O objeto, nesse contexto cênico, nos solicita um
olhar menos imediatista para, ao final, deliciarmo-nos com suas curvas, densidades,
texturas e simbolismos. Os usos e os sentidos das coisas em constante estado de
movência. Apressadamente um mero tripé é apenas ele mesmo, porém, nas mãos do
palhaço a estrutura se transforma em antena. Chico manipula bizarras criaturas que
parecem ter escapado do Livro dos Seres Imaginários, de Borges. Os cavaleiros do
apocalipse, o alazão, o extraterrestre, o vidente, assim como as bugigangas insólitas (o
radar ou o telescópio) nos cativam pelas suas formosas estranhezas, além de efetivamente
comporem, ao lado do ator, a paisagem do espetáculo, mobilizando visualidades e
desenhos de cena. É patente o esmero artesanal de Chico (também ele confeccionador dos
objetos e dos bonecos), fato este que nos ajuda a compreender mais a intensidade e a
delicadeza impressas na relação entre o ator e a matéria [aparentemente] inanimada.

Laborioso Contato aglutina, em sua composição, os experimentalismos que a Trupe
Motim vem realizando em seus mais de 10 anos de existência: recompor e justapor
linguagens artísticas díspares, como a bufonaria, as máscaras, o teatro de objeto e de
animação, a palhaçaria, o cordel, assim como certos elementos espetaculares das
manifestações culturais de rua. No panorama teatral contemporâneo, jorra do Ceará, (há
muito, é verdade), uma cena bastante marcada pela pesquisa e pela autoralidade, como se
vê nos projetos de Jéssica Teixeira, Pavilhão da Magnólia, Grupo Bagaceira e da Inquieta
Cia., para ficarmos com apenas alguns nomes. A Trupe Motim contribui para o
fortalecimento desse cenário artístico.

Um palhaço nordestino, do interior do Ceará, representou os terrestres diante do iminente
fim. É instigante esta possibilidade de nos enxergarmos por meio destes seres
arlequinados de longuíssima tradição na história dos teatros ocidentais: bobos da corte,
artistas cômicos de feiras, os hilários tipos da commedia dell’arte, Joões Grilos, tricksters
oriundos do universo farsesco, popular, diabinhos aloprados do imaginário vivo. Neles
estão nossas quedas e bobagens, insignificâncias e maluquices, mas, acima de tudo, uma
insistência, malandra e sorridente, na vida. Em sua tragicomédia, o nariz do palhaço
mostra o melhor e o pior, o mais alto e o mais baixo desta junção de milagre e acidente a
que chamamos de humano.
A bomba não explodiu. Ainda temos tempo.

Ficha Técnica

Direção, Dramaturgia e Construção: Chico Henrique;
Produção e Técnica: Janaíle Soares;
Direção Musical, Composições, Instrumentos, Gravação de Música: Lucas Ribeiro;
Violão e Composições: Laelton Ribeiro.

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Compartilhar.

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

wpDiscuz
0
0
Deixe seu comentáriox
Sair da versão mobile