Assim como nossa sabedoria popular diz que “lobisomens sabem para quem aparecem”, a história do mundo é cheia de coincidências que só as são para quem nelas acredita.
A maior delas talvez seja a Era Axial, batizada pelo filósofo alemão Karl Jaspers, por ter sido um momento especial na história – ou pelo menos na história da Eurásia – em que, em diferentes sociedades e territórios, surgiram, mais ou menos ao mesmo tempo, os autores centrais dessas civilizações.
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Ali por perto do ano 500 a.C., Confúcio apareceu na China com sua ética de educação, Sidarta Gautama, o “príncipe iluminado” mais conhecido como Buda, começou a pregar no Oriente, enquanto Platão e Aristóteles, formavam a base da filosofia ocidental na Grécia.
Durante muitos anos também se pensou que o profeta Zoroastres, ou Zaratustra, que é o inspirador do “zoroastrismo”, também tenha convivido nessa época, mas parece que não. Segundo as últimas pesquisas, a religião surgida ao leste da Pérsia, mais ou menos onde é o atual Afeganistão e suas estepes, é uns cinco séculos mais antiga.
Para quem não conhece, o zoroastrismo que foi a principal religião asiática até a ascensão das três religiões monoteístas “do livro” – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – e serviu de inspiração para as três em muitos pontos.
E para que possa entrar no balaio de coincidências da Era Axial, podemos dizer que neste tempo era conhecida entre seus adeptos como mazdayasna ou mazdaismo, que vem da palavra persa “sabedoria” (mazda) e que, ao pé da letra, significa “louvor da sabedoria”, algo bem próximo, convenhamos, do que pregavam Platão e Aristóteles ali por perto com sua philosofia ou “amor à sabedoria” em grego.
Mas não é desse momento que queremos falar hoje, quando se comemora o Dia Mundial do Livro, mas sim das três mortes simultâneas – ou “comoriência”, para o direito penal – que fizeram com que esta data, em 1995, fosse escolhida pela Unesco para comemorar o Dia Internacional do Livro.
São três autores fundamentais para entendermos o mundo nos últimos 600 anos, um menos conhecido que os dois uber famosos colegas. Os três tiveram vidas muito diferentes, mas convergentes em seu momento extremo, em pontos que só liguei após ler e ouvir muitas vezes os notáveis livro e podcast “Agora, agora e mais agora” do escritor e político luso Rui Tavares.
Um livro e três mortes
Filho de pai espanhol e mãe inca, Inca Garcilaso de La Vega saiu da cidade de Cuzco aos 21 anos e andou mais de mil quilômetros até Lima em 1560. Naquele mesmo ano, tomou um navio para a Europa que naufragou nos Açores portugueses, mas foi salvo e se estabeleceu naquele país do qual escreveu a primeira história geral.
Anos depois, já vivendo na Itália, se encantou com um livro chamado Diálogos de Amor, assinado pelo pseudônimo Leão Hebreu, mas que, no fundo, era Judá Abravanel (que sim, é um antepassado do apresentador brasileiro Silvio Santos) um filósofo judeu português perseguido pela inquisição.
Pois Inca traduziu o livro, que batizou de A tradução do índio dos Diálogos de Amor de Leão Hebreu, para depois vê-lo se espalhar pela Europa como rastilho de pólvora.
O livro é um tratado de filosofia que bebe claramente das ideias aristotélicas de um intelecto ativo que une toda a humanidade – “somos uma única família de gênios“, disse em Curitiba Francis Ford Coppola, o mais aristotélico dos criadores contemporâneos.
Mas o livro de Leão Hebreu e seu tradutor do novo mundo tinha uma novidade, que era, numa simplificação exagerada, afirmar que o maior propósito da humanidade não era apenas contemplar a Deus, mas expandir o intelecto o máximo possível como queriam os gregos, mas fazer isso como o melhor caminho para a busca da felicidade.
Uma ideia fundadora da modernidade que entusiasmou um escritor contemporâneo de Inca, que também escrevia em espanhol, chamado Miguel de Cervantes. Logo nas primeiras páginas de seu Dom Quixote, ela faz referências muito elogiosas aos Diálogos de Amor.
Mas não foi só Cervantes quem se encantou com “Os Diálogos do Amor”. Na França, o ensaísta Michel de Montaigne escreveu uma “teoria do amor” citando Leão Hebreu e, na Inglaterra, o bardo William Shakespeare também se revelou um entusiasta da ideia de tolerância que ele apresentava, depois de séculos de fanatismo e de uma ideia obsessiva com o fim do mundo.
Shakespeare cita trechos dos “Diálogos” em um discurso que escreve numa peça coletiva sobre Thomas More, para falar da inumanidade com que se tratavam os refugiados do mundo já naquela época.
A coincidência fatal, contudo, é que o até hoje muito pouco falado Inca Garcilaso de La Vega morreu em 23 de abril de 1616. Pois Shakespeare também morreu no mesmo dia, e Miguel de Cervantes morreu, muito provavelmente, na virada da noite do dia 22 para 23 do mesmo ano.
Os últimos, inspirados em parte pelos primeiro, mudaram a história da literatura, do livro e da arte – e isso não pode ser uma simples coincidência.