Depois de mais de 41 anos, finalmente escutei a voz dela ao vivo — e foi emocionante. Foram 21 músicas, passando por quase todos os álbuns. Mas, para mim, poderiam ser incluídos todos, porque essa banda — ou melhor, essa mulher, Christine Ellen Hynde —, no auge dos seus 74 anos, ainda pode tudo.
Ela estava no olho do furacão na metade dos anos 70, presenciou o estopim do movimento punk em Londres e todos os seus desdobramentos. A seguir, nas diversas formações que o Pretenders teve, ela sempre se reinventou sem nunca deixar de ser uma excelente musicista, compositora, cantora, guitarrista e ativista incansável na causa da defesa dos animais.
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Tudo começou com Hate for Sale (2020), uma pedrada do excelente álbum homônimo, cuja turnê foi impedida pela pandemia — e, só por isso, não teve uma grande aceitação. Mas tem excelentes músicas; tanto que a segunda do show foi Turf Accountant Daddy (2020). O público, ainda manso, ia escutando sentadinho — algo que, devo confessar, me irritava profundamente.
Daí veio Kid (1979), um superclássico do primeiro álbum, uma obra-prima — e o público ali, vendo como se fosse um canal de streaming qualquer, só pra passar o tempo. Hellooooo! É Chrissie Hynde no palco, modafuckers! Emendaram com The Buzz (2020), que é a segunda música do Hate for Sale — e uma espécie de homenagem a Kid.
Minha cidade já era
Quando começou o riff de Boots of Chinese Plastic (2008), meu coração disparou: “One, two, three, four!”. Caraca, que pedrada na orelha é essa música! Esse Break Up the Concrete (2008) redefiniu o som da banda, trouxe essa verve punk/folk. Quem nunca escutou esse disco não sabe nada dessa banda. Vá escutar agora! Foi aqui que o James Walbourne foi convocado — um baita guitarrista. Provavelmente só eu dancei.
E, como ela fez uma introdução ao folk, já mandou My City Was Gone (1984), do Learning to Crawl. Como eu AMO ESSA MÚSICA! Tudo é perfeito: letra, arranjos, melodias. Mas o público, sonolento, esperando os “rítes dos ano oitêntá”… Essa é a MELHOR MÚSICA DO DISCO. HEREGES!
Feita a cama com lençóis de seda, era o momento exato para colocar Private Life (1979), do primeiro disco. Assim como as melhores bandas punks, o Pretenders também flertou com o reggae — e essa é outra pérola que vem de um colar musical imensurável.
Sarrafo alto
É importante lembrar que a banda, que excursiona desde 2023 após o lançamento do excelente Relentless, é formada por vocal, baixo, duas guitarras e bateria. Solamente: Kris Sonne na bateria (que também, como eu, usa Paiste Signature Series) e Dave Page no baixo — é uma cozinha boa pra carvalho. O sarrafo sempre foi bem alto nessa banda!
Back on the Chain Gang (1984) vem à tona, linda, com essa sequência de acordes que dá nó na garganta e os vibratos na hora certa de Miss Hynde. Sim, o público finalmente acordou — pelos deuses e deusas, na oitava música lembraram que estavam num show de rock. Na sequência, Talk of the Town é um hino inesquecível de 1981 — e é demais!
Daí veio Hymn to Her, outra coisa linda que Chrissie nos deu. Ela começou essa versão mais intimista no álbum ao vivo The Isle of View (1995), num arranjo de voz e piano elétrico tocado por um piá de 27 anos, de uma banda que começava a fazer sucesso em Londres. Ah, sim — ele era tão somente o Damon Albarn.
Estou vivo
Christine é esperta. Quando começaram a bocejar novamente, ela mandou a irresistível Don’t Get Me Wrong (1986). “Oba, essa é da minha época!” — e os mais afoitos ficaram de pé, momentaneamente. Ora, para mim, todos os discos são da minha época. Estou vivo!
Disparam Thumbelina (1984), que também é a melhor música do Learning to Crawl, empatada com My City Was Gone — a lista é minha e, sim, tem empates! O que seria dos meus arranjos nos Bad Folks se eu não tivesse escutado essa música em 1984? É DEMAIS. Mas a maior parte do público nem sabe que é do mesmo Learning to Crawl.
Let the Sun Come In (2023), do Relentless, é uma coisa incrível. Mais riffs de guitarra do Walbourne — essa música tem a verve perfeita do que foi, é e será sempre essa banda. E eles emendam com Junkie Walk (2020).
Mas o “crème de la crème” veio com Night in My Veins (1994), do espetacular Last of the Independents. Esse disco é um dos meus favoritos — sempre escuto de cabo a rabo. Impressionante, vivaz, trouxe uma sobrevida muito importante pros Pretenders. Foi muito emocionante escutar essa. Perdi a pose completamente.
E vem Time the Avenger (1984). Nesse momento, eu vi pessoas indo embora — acreditem, indo embora. Mal sabiam elas que essa também é do Learning to Crawl. Agora sim, todos se levantam. Quase todos. Tudo bem.
Middle of the Road (1984), mais um hino dos Pretenders. “Agora sim, essa é boa!” — eu realmente ouvi isso de alguém que eu nunca, jamais quero conhecer. Adoro essa música. Emblemática, assim como tantas outras.
Cisco no olho
Discípula de God Dylan, ela solta Forever Young (1974), regravada por Hynde em Last of the Independents, a “chave de ouro” desse espetáculo de disco. No show, o arranjo ficou muito bonito e emocionante. Como tudo na vida deveria ser. Caiu um cisco aqui no olho, mas tudo bem.
E eles começam Message of Love (1981), a primeira música dos Pretenders que me chamou a atenção. Não preciso dizer mais nada. Que foda que foi isso. Foda, porque foda é coisa boa. E você deve estar se questionando por que esse cara — eu — colocou esse título ridículo nessa resenha desse show. Talvez poucos tenham pescado a dica, mas vou escrever:
Now look at the people
In the streets, in the bars…
Não sacou ainda? Continuemos.
I’ll Stand by You (1994) — a cada música desse disco eu ficava mais feliz. É uma superbalada e, sim, tem que ser com ELA cantando. E fechou com Precious (1981), mais uma pedrada. De uma maneira espetacular. Que show, que banda, que performance estupenda. Eu fiquei muito feliz.
Os Pretenders fazem mais dois shows no Brasil, em Brasília e São Paulo, e não se deve perder por nada.
Muito obrigado, Chrissie Hynde. Te vejo no Ibirapuera!
E aí, entendeu o título?
Olha só, uma das coisas de que mais senti falta nesse show foi do Martin Chambers, baterista e cofundador da banda junto com a Christine. Não que o Kris Sonne não tenha dado conta do recado — pelo contrário. Ele é um excelente baterista, mas, com ele, temos uma outra banda.
Aprendi muito com Chambers: viradas, convenções rítmicas de rock, anti-convenções, usar um china cymbal quase verticalizado, enfim. Além de tudo, era um showman em todos os discos e apresentações que fez com os Pretenders. Foi um exímio backing vocal, cantava muito e deixou uma marca registrada nas músicas.
Beep-Beep
Em praticamente todos os registros ao vivo de Message of Love (1981), música e letra de Hynde, ele sempre fazia algo que eu não tinha percebido na gravação original. Logo após o verso “Now look at the people / In the streets, in the bars…“, ele cantava essa onomatopeia: “beep-beep”.
Seria, creio, para recriar o ambiente pré-pub — com as pessoas amontoadas nas ruas, motos e carros, bebidas, drogas etc. Todos procurando algo que nem sabiam direito. Esse deveria ser o clima da noite desse underground londrino/francês. A música foi gravada em Paris.
Confesso que, de tanto escutar as versões ao vivo, passei a ouvir isso também na versão de estúdio — mas pode ser um delírio meu. Teste você também.
O “Tempo, o Vingador” deve ter tirado esse nosso herói dos palcos. E esse implacável menininho de luvas na capa de Relentless, para mim, é uma homenagem ao Martin.
E eu sei exatamente quando cantar “beep-beep”.
Aprendi com o Chambers.
Curitiba, 20 de maio de 2025