Do Jornal da USP

Diferentemente de outros gêneros musicais contestatórios valorizados academicamente, o pagode foi frequentemente marginalizado nas universidades, em grande parte devido ao preconceito e por ser associado a um estilo emotivo e centrado em ideais românticos. Refutando essa ideia, uma pesquisa da USP mostra que em São Paulo, mais do que um novo estilo musical, o pagode surgiu como um movimento de resistência cultural das “quebradas” de comunidades periféricas dos anos 1980.

+ Leia Também + Belém recebe o título de capital mundial do brega 

Protagonizado por jovens pobres e pretos, através da música eles expressavam seus sonhos e sua subjetividade. O gênero teve como base o samba, mas criou uma sonoridade própria incorporando outras influências externas. A pesquisa conta a história do pagode dos anos 1990, período em que teve sua maior popularidade na mídia, e a trajetória de alguns compositores, instrumentistas e intérpretes ligados aos chamado pagode paulistano.

A primeira formação do Exaltasamba. Foto: reprodução

A pesquisa investigou a produção musical de grupos como Fundo de Quintal (Sá Janaína e Falso Herói), Biro do Cavaco (Aliança das Marés), Redenção (Fronteiras), Art Popular (O Beco), Sensação (Namor e Louco Apaixonado), Soweto (Vento dos Areais e Mundo de Oz), Exaltasamba (Minha Dor e Gamei), Só Pra Contrariar (Interfone) e Kiloucura (Já Tentei). O estudo também  incluiu a transcrição de canções e análise técnica de progressões harmônicas, estruturas de acordes, arranjos, instrumentação e execução

Nova estética musical

De acordo com o músico e autor da pesquisa Igor Damião Graciano, o pagode paulistano surgiu nos anos 1980 influenciado sobretudo pelo grupo Fundo de Quintal (grupo de samba brasileiro formado no Rio de Janeiro na década de 1970), pelos bailes black e por artistas que contribuíram para uma nova estética musical. Segundo o músico, diferentemente do samba tradicional, o pagode ganhou destaque por sua ampla presença na grande mídia e pela incorporação de elementos de diversos estilos, como o pop dos anos 1990, soul, rhythm and blues (R&B) — estilos fundamentais da música negra norte-americana —, além do funk e da influência de nomes como Djavan, Tim Maia, Jorge Ben Jor, além da bossa nova.

Em entrevista ao Jornal da USP, Wilsinho (Wilson dos Santos Soares), ex-integrante do Grupo Malícia, diz que o pagode dos anos 90 era diverso, com canções que iam do romântico ao estilo mais animado e dançante. Segundo o músico, essa autenticidade marcou uma geração e construiu um legado duradouro. “Prova disso é que muitos grupos atuais continuam regravando sucessos daquela época. Músicas lançadas há três décadas ainda são executadas nas rádios, reforçando o impacto e a relevância daquele período para a história do gênero”, relata.

Wilsinho diz que fazer parte do movimento dos anos 1990 foi motivo de grande orgulho. Segundo ele, essa foi a verdadeira era de ouro do pagode, quando o gênero alcançou o topo das paradas de sucesso em todo o Brasil.

Naquele período, “os grupos se destacavam por suas identidades únicas — cada um com um timbre vocal distinto, estilo próprio de se vestir e maneira particular de interpretar suas músicas e coreografias”, diz. Atualmente, Wilsinho segue carreira solo e seu último trabalho foi a produção do álbum digital Luau do Wilsinho, com músicas inéditas e regravações, disponível em todas as plataformas.

Movimento de resistência cultural

A pesquisa Movimento pagode noventa: o sonho, o romantismo e suas harmonias, apresentada no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob orientação do professor Marcos Câmara de Castro, traz também um pouco da vivência de Graciano. Com formação musical desde a infância, filho de pagodeiro – de quem ganhou seu primeiro instrumento, um cavaquinho -, ele sentiu a ausência desse estilo ao longo de toda sua trajetória educacional.

O pesquisador defende que o pagode tenha reconhecimento e seja ensinado em conservatórios, escolas de música e universidade com o mesmo prestígio concedido à bossa nova, à música popular brasileira (MPB), ao rock a outros gêneros musicais. Durante sua formação, Graciano relatou ter enfrentado diversas microagressões relacionadas à sua trajetória como pagodeiro e ao seu capital cultural, embora, na época, não tivesse plena consciência da discriminação sofrida.

Em sua opinião, “as poucas pesquisas sobre o movimento nas universidades é reflexo do preconceito contra esse gênero musical e do apagamento histórico da cultura negra na sociedade brasileira”, diz.

Segundo o professor Castro, ao ser tratado como objeto de pesquisa, o pagode representa um avanço na perspectiva da musicologia no contexto do pensamento decolonial – uma abordagem crítica que examina a música em sua totalidade, como ela foi produzida, consumida e inserida pela sociedade. “Graciano mergulha no contextos dos ‘pretos periféricos’ que construíram o movimento que repercute até hoje”, diz. “Sua abordagem busca valorizar manifestações musicais brasileiras historicamente marginalizadas pelo cânone oficial, que reflete uma política de memória excludente e seletiva”, avalia.

Pagodeiros entrevistados

Entre as entrevistas feitas para a pesquisa, Graciano conversou com o violonista Izaias Marcelo, diretor musical do cantor Péricles Aparecido de Faria – o Péricles, ex-vocalista do grupo Exaltasamba. O encontro entre os dois ocorreu na virada de 2024, durante uma confraternização da equipe de Péricles, em que Graciano foi convidado a integrar o time de músicos que tocariam na festa do cantor.

O violonista disse ter crescido imerso em ambiente de música evangélica. Aos 14 anos, já atuava como copista do pai, transcrevendo e organizando partituras. Dois anos depois, passou a ouvir e a estudar as músicas do grupo Fundo de Quintal, atraído pelo som do banjo, pelas harmonias, melodias e modulações (mudanças no tom de base da música). Com o tempo, ele ampliou o repertório ouvindo artistas como Djavan e João Bosco.

Izaias também não compreende o preconceito que a academia tem com o pagode porque, a seu ver, o gênero dos anos 1990 é bastante rebuscado. “A linha harmônica, as tensões dos acordes e os encadeamentos que usávamos eram praticamente todos da bossa nova ou do Djavan”, relata. Questionado sobre seu processo de harmonização de uma canção a partir de uma melodia recebida, Izaias diz que prioriza a sensibilidade. “A parte acadêmica a gente já tem, sigo o campo harmônico do tom e, em alguns momentos, utilizo acordes modais, inversões e caminhos de baixo, dependendo da melodia, mas, acima de tudo, é o coração que me guia”, declarou.

Outro entrevistado foi Altay Veloso, compositor carioca que influenciou a juventude periférica e preta que ouvia e fazia pagode nos anos 1990. Suas composições de cunho romântico foram gravadas por artistas de diferentes gêneros e gerações, como Vanusa, Zizi Possi, Emilio Santiago, Chrystian e Ralf, Roberto Carlos, Nana Caymmi, Fat Family, entre outros. No samba e pagode, nomes como Negritude Júnior, Soweto, Jorge Aragão, Só Pra Contrariar, Exaltasamba e Grupo Pirraça também interpretaram suas composições.

Durante a entrevista, Altay revelou sua preferência por produções românticas com finais felizes. “Gosto das canções em que o amor é bem resolvido. Não sou muito chegado a falar de tristeza ou fracasso. [Eu] me considero alguém que tem uma boa relação com o afeto, o amor e a ternura”, afirmou.

Análise de Interfone

“A cidade já pegou no sono

Eu já li de novo as velhas revistas

Estou em pleno abandono

O Jô já fez a última entrevista

Amauri também já foi embora

Já está terminando o Perfil

O Intercine que acabou agora

Com certeza você também viu”

Dentre as músicas analisadas, Graciano destaca Interfone, de Altay Veloso, tocada no disco do grupo Só Pra Contrariar, interpretada por Alexandre Pires e arranjada por Jota Moraes. Graciano explica que, no trecho inicial da música, o personagem principal da canção parece estar conversando com a pessoa amada e sofrendo, deixando claro na descrição que se trata de um casal separado.

Conflito no refrão

“Eu estou na portaria do seu prédio

Estou no celular 

Mas o porteiro é novo ele não me conhece

Tá cheio de suspeita, tá desconfiado

Pega o interfone, diga pra ele

Que ele está falando com seu namorado”

O pesquisador diz que no refrão surge um conflito: o narrador relata ter saído de casa durante a madrugada e estava agora diante do prédio da pessoa amada, localizado em um bairro distante, possivelmente em uma metrópole como São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. No entanto, ele é impedido pelo porteiro de subir para vê-la. “A pessoa parece se desesperar ao perceber que o porteiro não o deixa entrar no condomínio por suspeitar que ele não está com boas intenções”, diz o pesquisador. Analisando o cenário, Graciano avalia que a cena está carregada de questões raciais e de violência urbana, que nos anos 1990 atingiam taxas alarmantes. “Provavelmente, o ‘eu’ da música era preto, e ele temia por sua vida se ficasse por muito tempo parado em frente ao prédio da amada”, diz.

Final feliz

“Já são altas horas, mas se a saudade

Não quer deixar a gente dormir sossegado

É melhor eu subir, te amar e dormir do seu lado”

No final, o sujeito da música retoma o romantismo falando sobre reconciliação e saudade.

De acordo com o pesquisador, a ambientação musical, que remete a trilhas de comédias românticas, evolui com a entrada de bateria, piano elétrico Fender Rhodes, contrabaixo de cinco cordas, pandeiro, congas, surdo e violão de aço. “Apesar da leveza sonora, o enredo revela um conflito racial entre o personagem e o porteiro – fato não explícito na letra”, diz. A narrativa encerra com o retorno da melodia inicial, marcando a despedida do personagem carismático citado por Altay Veloso.

0 0 votos
Classificação do artigo
Inscrever-se
Notificar de

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Compartilhar.

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

wpDiscuz
0
0
Deixe seu comentáriox
Sair da versão mobile