Um álbum guiado por A NIK LAMENTO, personagem criada por Melissandra e Htadhirua (diretora de arte e criativa do projeto), inspirada nas encantarias da Amazônia: NIK LAMENTO, mulher travesti que foi perseguida e morta no período da colonização brasileira pela Companhia dos Padres Jesuíticos.
Foi condenada pela lei da inquisição por bruxaria, sodomia e práticas de magia. Foi queimada viva e suas cinzas espalhadas nas águas que rodeiam Belém, para que nunca pudesse retornar. Nas águas, NIK é encantada no peixe MAPARÁ.
Na encantaria, NIK se torna patrona das mulheres e se comunica com o mundo mortal através do MAPARÁ, onde reza a lenda que durante a noite, se tu comeres um Mapará, uma mulher irá até a porta da sua casa e bater quatro vezes, te perguntando “Me diga, qual teu lamento?”.
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Um conceito e tanto que permeia o 3° disco de Melissandra, artista paraense com uma das vozes mais emergentes do pop amazônico contemporâneo e que une sonoridades do norte do Brasil a ritmos como funk, rap, trap, brega e carimbó, sempre atravessados por vivências trans e críticas sociais.
“Falar sobre uma mulher que foi morta durante a inquisição no Brasil no território amazônico, evoca discussões pertinentes e presente até os dias atuais como a exploração dos recursos naturais, a venda, rapto e estupro de crianças indígenas no comércio das grandes madeireiras, o assassinato de tantas lideranças de comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas no interior do estado. Porque sobretudo são essas mulheres que até hoje enfrentam lutas pela defesa do seu corpo e do seu território”, explica Melissandra.
“Não é exatamente que vai além, mas os dois discursos estão imbricados um ao outro de forma que não se dissociam. A luta de gênero também perpassa a luta pelo território se tratando de região amazônica por causa dos contextos políticos desenrolados ao longo dos anos aqui. Tentamos retratar esses aspectos em uma parte do photoshoot do disco, onde podemos perceber NIK presa em uma rede de pesca cheia de lixos.”
A obra é dividida em dois lados. O Lado A (faixas 1 a 5) mergulha no funk e no rap, refletindo os desejos, dores e vivências de NIK em carne mortal. O Lado B (faixas 6 a 12) representa sua divinização, com sonoridades regionais como o brega, o carimbó e o côco, abrindo espaço para mensagens de cura, encantamento e vitória travesti.
O disco começa com a instrumental “Transe”, que prepara o mergulho nesse universo. Em seguida, “A NIK LAMENTO” apresenta o espírito da personagem em funk e rap, evocando desejo e empoderamento. “Eu Não Quero Compromisso”, primeiro single, segue essa força, assim como “Suco de P**a”, feita para divertir o público. “Divina”, com Rafa Bebiano, encerra o lado A com crítica à transfobia e homenagem às divas travestis.
O lado B inicia com “Encantamento”, feat. Coytada, celebrando a força coletiva trans da Amazônia. “Maniçoba (A Verdadeira)” lança um feitiço debochado contra o mau olhado. “Praia do Tucunaré” é romântica e safada, e “Dia Meu Sem Tu”, puro brega paraense para sofrer dançando. “História de Pescador”, com Iris da Selva e flautas de Luany Guilherme, é o primeiro carimbó da artista.
Em “Materna”, Melissandra revela sua vivência como mãe travesti em um delicado côco de ninar. Por fim, “Evocação”, segundo single, costura samba e pop eletrônico para resumir a história da entidade encantada e abrir caminho para os próximos rituais sonoros de MAPARÁ.
“MAPARÁ é a voz transcestral de disseminação e consolidação do meu trabalho enquanto uma diva pop completa. Aqui, atinjo a coesão, coerência e amadurecimento que desejei construir desde o início”, descreve a artista.
Com produção musical assinada por BEA, o disco é um mergulho íntimo, político e poético.
“Produzir MAPARÁ foi como um mergulho no fundo do rio. Intenso, íntimo e inesperado. Construímos algo para além da música: uma travessia de verdades, acolhimentos e descobertas que transformaram nossa sonoridade. Uma travessia trans, amazônica e absolutamente única.”
MAPARÁ se estabelece como um marco na trajetória de Melissandra — não apenas enquanto artista, mas como corpo político e espiritual em movimento. Ao invocar a força encantada de NIK LAMENTO, o disco transcende a música para erguer um manifesto que entrelaça território, memória e identidade travesti na Amazônia.
É um convite ao lamento, mas também à celebração de uma estética transcentrada que rompe silêncios históricos e reafirma a presença de corpas dissidentes na linha de frente da arte brasileira. Com potência, beleza e coragem, Melissandra entrega um trabalho que ecoa nas águas, na mata e no som como reza, grito e renascimento.
Ouça o disco: