Antes de completar vinte anos, logo após ingressar na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Fabiana Faversani precisava de um emprego para pagar o aluguel da quitinete onde foi morar sozinha, pela primeira vez na vida, numa área suspeita do centro de Curitiba. Achou a vaga de atendente de balcão da Livraria do Chain, a tradicional e peculiar loja de livros a poucos metros da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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Naquele tempo, no final do ano 2003, um cliente e vizinho, o escritor Dalton Trevisan (1925-2024), ainda usava a livraria como ponto de contato com o “mundo”. O endereço na rua General Carneiro 441 era a caixa postal do  autor de ‘Novelas Nada Exemplares’ que lá recebia e deixava recados e livros, e fazia sua comunicação oficial com editores usando o aparelho de fax do amigo Chain.

Desta maneira, o escritor passava quase todos os dias por ali e, numa daquelas tardes, conheceu a balconista, cerca de 60 anos mais jovem. A amizade entre os dois curitibanos nasceu na primeira conversa e foi um dos mais bonitos contos de Dalton, este escrito à quatro mãos.

“Ele estava sempre lá, muitas vezes vindo da locadora de vídeo. Eu era maluca por filmes, mas não tinha dinheiro para alugar. Eu falei: me empresta que eu rebobino e entrego”, embra Fabinha, como a chamam todos os seus amigos. “Ele me emprestava com a condição que a gente conversasse sobre eles depois, tomando chá”, conta.

Dalton foi o mais comunicativo dos reclusos. O mais vespertino dos “vampiros”. Como bem disse seu biógrafo, Christian Schwarz, enquanto a saúde permitiu, foram poucos os dias em que o autor não saiu de casa para conversar com alguém.

Dalton, sabe-se, gostava muito de filmes americanos dos anos 1940 e 50, em especial os grandes faroestes e filmes ‘noir’, mas, segundo Fabinha conhecia muito bem toda a história do cinema e adorava filmes orientais, as vanguardas europeias, os filmes da “nova Hollywood”, era fã do seriado Star Trek e vibrava com as melhores coisas que estavam sendo lançadas no começo do século, como os filmes dos Irmãos Coen.

Em pouco tempo, o encontro improvável evoluiu para a clássica relação entre mentor e pupila. “Ele começou a me dar livros, montar uma espécie de formação literária: ‘Agora você tem que ler isso, agora aquilo…’”. Fabinha formou-se em Gravura na EMBAP e logo ingressou na Faculdade de Letras da UFPR e, antes que percebessem, a amizade virou uma parceria profissional que mudou a vida de ambos.

Anjo da Guarda

Fabinha e Dalton: amizade que mudou a vida dos dois. Foto: Maringas Maciel / Fringe

“A gente se aproximou muito e isso mudou minha relação com a literatura, minha rotina e minha vida”, disse. “A gente tinha uma afinidade cultural, mas também espiritual. Eu comecei a contar histórias dos meus amigos. Acho que dei uma modernizada no repertório dele”, brinca.

Além de ampliar o repertório geracional do amigo, Fabinha começou a cuidar das atividades práticas do autor, a colocar ordem no material da mítica casa do Alto da Rua XV que vai virar um centro cultural. Quando passou a visitar a casa, ela viu que havia problemas estruturais sérios, com goteiras ameaçando os livros da biblioteca. A partir de então, passou a ser o anjo da guarda da obra e memória literária dele.

“Um dia falei: ‘Ô, Dalton, quer que eu arrume isso pra você? Tá triste essa situação.’ E comecei a ajudá-lo. Foi aos poucos. Ele só disse: ‘Vem trabalhar comigo, a gente arranja coisa pra você fazer.’ Ele precisava de ajuda, e eu era a pessoa certa, na hora certa.”

Com o tempo, Fabinha passou a cuidar da correspondência com editoras, das autorizações para antologias e passou a ajudar nas seleções e revisão dos textos. Não por acaso, os últimos dez anos de produção literária de Dalton foram, talvez, os mais produtivos e exitosos.

Na última década de trabalho criativo, Dalton, que parou de escrever originais para publicação em 2014, fez  sucesso como nunca, foi traduzido em muitos países e recebeu prêmios importantes. Ampliou sua temática ficcional e mudou o modo de escrever, chegando ao refinamento extremo de sua prosa em livros geniais.

Do lado dela, o encontro resultou numa “formação maravilhosa”. “Escutava muito, ele tinha um repertório incrível. Era um excelente contador de histórias. Imagine eu, com 20 anos, ouvindo-o dizer coisas como: ‘Aí, fui na casa do [Manuel] Bandeira, a gente foi comer galeto…’ e isso tudo começou a ficar vivo pra mim. Seus amigos viraram meus também, de tão próximos que pareciam.”

No meio da primeira década do século 21, Fabinha tinha a chave do segredo mais bem guardado da cultura brasileira: a escrivaninha do mais importante autor da língua portuguesa e o acervo que lhe servia de referência.

“Desde os 14 anos, guardava tudo: revistinhas colegiais, livrinhos de poemas, matérias de jornal. Guardava nos livros-caixa da fábrica. Até a primeira publicação que ele mandou pra Tico-Tico, com 13 anos, ele recortou, colou e guardou”, disse.

O Centenário

Por conta da gestão deste acervo, ninguém está trabalhando tanto como Fabinha por ocasião das comemorações do centenário de Dalton. Nesta sexta-feira (13), o Instituto Moreira Salles lançou um curta-metragem sobre Dalton que está disponível no canal do YouTube do IMS, que fala exatamente dessa doação do acervo de Dalton ao IMS em 2024.

Filmado na última residência do autor no centro de Curitiba, a poucos metros da Biblioteca Pública do Paraná, o filme traz uma raridade: a imagem de Trevisan trabalhando em frente ao seu computador, aos 99 anos.

Esta é só uma das dezenas de iniciativas realizadas em celebração ao centenário do escritor, todas controladas pessoalmente por ela. Chamada de representante ou agente de Dalton, me parece mais justo chamá-la de editora de sua obra.

Fabinha observa que Dalton quase alcançou o próprio centenário, e aposta que ele iria ficar muito satisfeito com toda a movimentação em torno de sua obra.

“Ah, ele iria se divertir! Ele acompanhava tudo que saía sobre ele. Estava super antenado. Estava gostando muito do que ficava sabendo do projeto da peça – Daqui Ninguém Sai. Aposto que ia pedir pra eu gravar a estreia para ele assistir”, disse.

Para ela, a agitação está servindo para aplacar a falta que sente da convivência com o grande amigo. Dalton e Fabinha almoçavam juntos quase todos os dias. Em restaurantes vegetarianos ou no Mercado Municipal de Curitiba.

Na pandemia, como Dalton quase não cozinhava, Fabinha tinha que se virar na cozinha antiga da famosa casa de Dalton.“Eu passava o dia inteiro com o Dalton, todos os dias. Sábado, domingo. A gente conversava, caminhava, fazia compras, ia ao médico junto.”

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A saída dele da mítica casa da rua Ubaldino do Amaral, teve muita influência dela. Além dos problemas da estrutura, a casa era escura e cheia de escadas e ainda que Dalton estivesse “vivinho e lampeiro”, o risco de queda, pesadelo na rotina de um idoso, era grande.

O terreno de quase 2 mil m² exigia manutenção permanente, mas os funcionários que fazia a peculiar poda dos cedros que circundavam o jardim, eram egressos da antiga fábrica  da família Trevisan e já tinham morrido ou se aposentado.

A pandemia acelerou a deterioração. A casa foi invadida para servir de mocó por personagens daltonianos que achavam que estava abandonada e houve mais de um assalto à mão armada. A mudança era necessária e Dalton adorou fazê-la.

Ilustração de Poty Lazarotto. Acervo: Dalton Trevisan

O apartamento onde viveu por quase três anos era seguro, agradável e amplo com seu  pé-direito alto e espaço para as estantes de livros e filmes. Um dos medos do escritor, quanto ao barulho dos vizinhos, já havia deixado de ser problema.

“Ele morria de medo de ficar escutando coisa, de ficar neurótico. Ele nunca tinha morado em apartamento antes. Só que ele já estava quase surdo e isso foi libertador”, brinca ela.

Como dito, Dalton já tinha parado de escrever originais para publicação dez anos antes da mudança. Fabinha conta que ele tinha consciência de que seu zênite de autor  já tinha passado. Na casa nova, escrevia uma coisinha ou outra, para manter o hábito da vida toda de escrever um diário.

“Ele dizia assim: ‘Eu ainda estou ótimo, mas não tenho mais aquela fagulha que eu tinha.’ Ele nunca perdeu a agilidade mental, mas era muito lúcido quanto ao controle e qualidade de sua obra.”

Cão de Guarda

Desde que se conheceram, um dos papéis que Fabinha desempenhou foi o de proteger Dalton do assédio da imprensa e das tocaias de chatos de todo o gênero. Ele a chamava de “cão de guarda”, ainda que ela seja famosa pelo bom humor e tenha cerca de 1,60m de altura.

Nesse ponto, Fabinha lamenta a grande deselegância das abordagens de pessoas que bem sabiam que ele preferia não ser incomodado. “Quando ele ganhou o Camões, em 2012, tinha um pessoal da imprensa tentando tirar foto pela janela da casa dele. Um absurdo”, lembra.

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Fabinha conta, porém, que alguns jornalistas conseguiam conversar com Dalton através dela sobre temas literários, e ele os respondia com gosto e atenção.

Até o final da vida lia jornais e livros, de contos, crônicas e poesia que recebia de todos os lados. Já não tinha muita paciência para ler romances, mas em livros mais curtos sempre dava uma olhada e dava conselhos, indicava livros.

Uma das grandes novidades do período vivendo no apartamento no centro, foi a criação da conta de Dalton no Instagram, administrada por Bia, filha dos escritores Caetano Galindo e Sandra Stroparo.

“A gente criou a conta com o Dalton ainda vivo. Ele viu, acompanhava e adorava ficar lendo os comentários. Ele não entendia os emojis. Vinha me perguntar: ‘O que significa isso aqui?’ ”

A Despedida

Foi a conta do Instagram que confirmou a morte do escritor no dia 10 de dezembro do ano passado. Mas sua despedida dos amigos mais próximos foi um processo que durou alguns meses. “Foi acontecendo aos poucos. Ele já estava com 99 anos, num ritmo contínuo de envelhecimento. Ainda assim, estava bem”, conta Fabinha.

“No fim, foi uma decisão dele: ‘Não quero mais. Cansei dessa bagaça. Não quero mais tomar remédio. Não quero mais tomar água. Me deixem descansar.’ O sentimento era esse. Eu respeitei. Mas foi muito triste”, conta.

Depois da partida de Dalton, veio o silêncio. Uma ausência do tamanho de sua presença solar. “Eu ocupei minha mente com os projetos ligados ao centenário, com o processo da peça, com a reedição das obras. De um jeito ou de outro, passei o luto fazendo coisas para não pensar muito.”

Para ela, o momento mais difícil foi esvaziar o apartamento e empacotar as coisas que ela passou organizando nas últimas duas décadas para enviar para o IMS.

“Aquilo foi o luto mais simbólico. Eu tinha organizado aquele acervo como se fosse um enterro. Já que não enterrei o corpo — que foi cremado —, organizar o acervo foi meu ritual. E a semana seguinte a isso… foi muito dura. Então fui fazendo as coisas, aí a dor vai passando de pouco em pouco”, disse.

Enquanto tomava um café na região da praça Santos Andrade, perto do Teatro Guaíra, no intervalo da preparação dos eventos da semana dedicada a Dalton na Caixa Cultural Curitiba, Fabinha já conseguia abrir um de seus proverbiais sorrisos ao tentar resumir as melhores qualidades pessoais do amigo e mentor.

“O Dalton era afetuoso e muito sagaz. Um humor picante, sapeca. Uma curiosidade viva — sinal de uma inteligência extrema. Eu o achava muito engraçado. Acho que não dou mais risada como antes”, disse.

“Ele estava sempre afiado. O Dalton era uma pessoa cortante. No bom sentido. Sabia dissecar qualquer assunto em uma frase. Isso era o que eu mais gostava.”

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Fabinha é admirável, sempre gentil, competente e solícita. Papel imprescindível na preservação da obra de DT! Parabéns, e que siga firme nesse trabalho.

Que matéria preciosa! Linda demais Sandro ❤️

Sensacional. Tudo! Que bom que a memória pulsa pela escrita de quem sabe contá-la. Viva Dalton Trevisan! Viva Fabinha! E viva Sandro Moser!

Essa história podia virar filme <3

Que matéria preciosa, Sandro!

Que relação de alma Fabinha e Dalton tiveram. E que texto envolvente e afetuoso desse outro escritor, personagem já com lugar garantido na história curitibana. 

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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