“O vento é a voz do tempo. Ele não tem pressa,
mas traz consigo a memória de todas as coisas que já aconteceram. (…)
Não uma linha reta, mas um movimento contínuo,
onde passado, presente e futuro se misturam, se entrelaçam”.
O trecho acima foi extraído de um dos textos de ‘Raízes de Liberdade’, primeiro livro de ficção do escritor angolano Hermelindo Silvano Chico, que será lançado pela Editora Arte e Letra neste sábado (21), das 15h às 19h, em Curitiba.
Na obra, Hermelindo utiliza a forma do conto — e do canto — para tratar de questões sobre a relação do homem com a natureza, da organização política dos povos, de temas de justiça, história e luta por liberdade, em textos de musicalidade poética sempre iluminadas pela chama do Ubuntu.
Esse é o nome do arcabouço filosófico de boa parte da África Subsaariana. Significa literalmente “eu sou porque nós somos” e defende a convivência harmoniosa dos homens entre si e com as forças da natureza.
Os contos de Hermelindo se aproximam das fábulas da tradição oral africana. Assim, como quem narra histórias ao redor de uma fogueira, ele promove no livro o encontro de personagens etéreos que compõem o universo – o destino joga xadrez com a história, por exemplo – para falar de coisas muito sérias que aprendeu em Angola e em seus estudos brasileiros.
“A maneira dos mais velhos educarem é assim: com uma palavra, com uma frase, com uma história. Porque a forma mais humana do conhecimento é essa. Eu, meus irmãos, meus primos ouvíamos o mais velho contar como surgiu a nossa etnia, quem foi o fundador do nosso reino, como Angola foi colonizada. A gente aprendia além dos livros.”
Hermelindo Silvano Chico nasceu em 1991 na região sul de Luanda, mas sua família é originária do Moxico, uma das 18 províncias de Angola, ao leste do mapa, pertencente à etnia chokwe, um dos povos da nação bantu.
Cresceu vendo os pores do sol da Ilha de Luanda, durante a última década da guerra civil angolana — uma cicatriz que ainda sangra como trauma coletivo em seu país de origem. Filho de pais iletrados, acaba de concluir o doutorado em Direito na PUC-PR.
Angola – Brasil
Sua história transatlântica teve início após concluir o curso de Ciências Criminais em Luanda, quando obteve uma bolsa de estudos concedida pela Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), com apoio da Embaixada do Brasil em Luanda.
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Em 2014, chegou ao Brasil pelo Rio de Janeiro — que conhecia das músicas e das novelas —, seguiu para São Paulo e, em seguida, radicou-se em Fortaleza, no Ceará.
Na UNILAB, Hermelindo completou sua graduação em Administração Pública e, incentivado por colegas e professores, decidiu seguir na vida acadêmica.
Em 2019, transferiu-se para Curitiba para cursar o mestrado em Direito na PUC PR. Com orientação do professor Carlos Frederico Marés, aprofundou-se na análise do Direito Tradicional Africano e sua relação com o Estado moderno.
Na atual constituição angolana, Lei e Costume estão equiparados. Um avanço pós-colonialista de justiça, ao reconhecer que cada povo deve ser regido com base em sua cultura, seus usos e tradições.
Com o mesmo professor Marés, Hermelindo deu um passo adiante na pesquisa de doutorado ao propor um paradigma socioambiental construído sobre as raízes do Ubuntu.
“Ali descobri que não há libertação sem comunhão, não há aprendizado sem partilha, não há raiz que sobreviva sozinha. Percebi que o saber, se não atravessa fronteiras, transforma-se em areia entre os dedos — sem impacto, sem fruto.”
Diante da dificuldade de explicar os conceitos da filosofia africana, escreveu contos de alta voltagem e musicalidade poética para dar exemplos mais acessíveis. Os textos impressionaram seu orientador, que o incentivou a publicá-los.
Foi assim que surgiu ‘Raízes de Liberdade’, da “consciência de traduzir a aridez das palavras técnicas em narrativas que tocassem almas”: uma ponte entre o rigor acadêmico e o encantamento popular. Sua vivência pessoal, ao trafegar entre dois continentes, também foi decisiva.
Assim como viu uma realidade brasileira que não aparece nas novelas, Hermelindo também se deparou com o imaginário brasileiro sobre a África, em situações constrangedoras — algumas das quais viraram material para o livro.
“Já me perguntaram se construíamos casas em cima das árvores e se usávamos roupas nas ruas — algumas dessas perguntas vieram de professores.”
Para Hermelindo, essas manifestações de ignorância refletem uma herança colonial que ainda estrutura os modos de pensar.
“A nossa visão de mundo é muito ocidentalizada. O Ocidente detém o monopólio da narrativa, e tudo que a gente consome é fruto disso. Os livros escolares ainda reproduzem a imagem da África como um continente de guerra, fome e atraso. Quase nunca se fala da riqueza de suas civilizações, línguas, saberes e filosofias. O meu trabalho, seja na academia ou na literatura, é também sobre isso: combater a ignorância com conhecimento e a caricatura com verdade.”
Batuques
Raízes de Liberdade é o primeiro livro de um escritor africano lançado pela Editora Arte e Letra, e mereceu um cuidado especial no projeto gráfico, assinado por Frederico Tizzot.
Na capa, além da natureza que representa muito bem a relação dos africanos com o cosmo, com o entorno e da cor amarela que representa a cosmogonia Ubuntu, aparece a figura de uma mulher e de tambores.
“A África, em muitos lugares, é uma sociedade matriarcal, né? A mulher mais velha é o topo da civilização. É ela que decide as coisas. Vemos a desintegração da mulher na sociedade como desequilíbrio e caos. Os africanos entendem que a sociedade hoje só vai de mal a pior porque a mulher foi retirada do seu lugar social.”
A outra imagem é o batuque. Toda conversa começa e termina com o batuque. E Hermelindo, além de escritor e doutor, é também um eclético DJ de música preta universal e compositor de rap.
“A minha leitura crítica da realidade, da sociedade, foi através do rap. O rap foi a primeira universidade, foi o que me moldou, me deu a literatura mais pura. Então, a minha poesia, a minha escrita, não vem de livros, ou de outros autores que eu li, mas do rap e das fogueiras”.
Lançamento do livro Raízes de Liberdade, de Hermelindo Chico
com leitura poética e conversa com o autor
Quando: 21 de junho (sábado) das 15h às 19h
Onde: Livraria Arte & Letra Rua Desembargador Motta, 2011 Curitiba/PR