Por Thiago Busse
“Simplesmente saia, e converse com um vizinho.
Talvez, isso seja mais importante do que uma imagem na internet.”
As palavras acima são de Agnès Varda, a cineasta franco belga homenageada no 14º Olhar de Cinema. Ao longo da semana e meia que durou o festival resolvi as levar a termo e me pus a flanar à procura de encontros, entre imagens na tela e conversas nas ruas, nos cafés e cinemas da cidade.
Entre idas e vindas do Cine Passeio, Cinemateca, MON e outros, foram dias deliciosos de colóquios cinematográficos e culturais, todos misturados com a sombra de Dalton Trevisan, que concomitantemente sobrevoava a cidade em razão das homenagens a seu centenário.
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Nosso já consolidado festival internacional uma vez mais trouxe o cinema independente de todos os cantos do mundo para Curitiba, entre curtas, longas, documentários, filmes experimentais e clássicos.
Não menos importante: recebeu em Curitiba muitas das pessoas envolvidas nessas obras; toda uma diversidade de produtores, críticos, distribuidores, realizadores, o que gera uma infinita rede de debates, conversas e trocas de experiências. Os frutos vindouros são difíceis de mensurar daqui.
Em meio à multidão de cinéfilos das mais variadas origens e crenças, foi tempo de ter a rara oportunidade de ver em comunhão numa sala de cinema ou numa sala de debate esses múltiplos olhares e refletir juntos sobre a arte vinda de todos os cantos do mundo.
Simples assim.
Como bem disse o grande documentarista escocês John Grierson “o cinema tem uma capacidade sensacional de salientar o movimento que a tradição ou o tempo tornou ameno”.
Eis a verdade, pois em que outro lugar senão no Olhar de Cinema pude reencontrar, depois de anos, o amigo cineasta londrinense Rodrigo Grota e o produtor Guilherme Peraro e, à mesa do café, passar horas falando sobre o cinema de John Ford e Howard Hawks?
E sobre Lima Barreto, o Gato Preto e o Kapelle tudo tão somente para, entre sinucas e “bacanaços”, culminar na obra do muitas vezes esquecido escritor João Antônio, e ainda ter a grata surpresa de que a obra desse genial escritor será transformada em filme pela dupla.
Ando um pouco mais e dou de cara com os queridos e infatigáveis críticos de cinema, Maria do Rosário e Luiz Zanin, vindos do litoral santista com a admirável disposição de sempre para debaterem e respirarem cinema apaixonadamente.
Num momento difícil em que eu e Zanin particularmente atravessamos com nossas paixões futebolísticas (eu com meu Furacão e ele santista fanático) nos acolhemos nos filmes para afastar mesmo que momentaneamente as tristezas recentes dos gramados.
Num debate após o belíssimo filme “Nem toda História de Amor Acaba em Morte” do cineasta curitibano Bruno Costa, pude presenciar o meu professor – e de boa parte da classe artística curitibana – Fernando Severo pontuar inteligentemente a obra com uma vitalidade admirável.
O que me faz pensar com carinho, como são importantes essas pessoas que como Severo e outros poucos batalham, apoiam e fomentam a cena curitibana e paranaense após muitos anos na luta pela cultura. A eles minha total admiração.
Durante o mesmo debate, pude testemunhar o múltiplo artista e gênio Octavio Camargo, um dos protagonistas do filme laureado no Festival CinePE, dar uma aula de inclusão e nos fazer enxergar um mundo totalmente rico e ativo que insistimos em negar, dos surdos, pretos e marginalizados que lutam nas entrelinhas da cultura branca tradicional das araucárias.
Não posso deixar de comentar como me enchem de orgulho ver Bruno Costa e o ubíquo Aly Muritiba entre os maiores cineastas do Brasil, a compartilhar generosamente seus conhecimentos, bagagem e experiências de anos de trabalho. Não só como amigo, mas como testemunha de todo o caminho percorrido por eles.
Me fez lembrar com carinho da época da faculdade de cinema no antigo Parque Castelo Branco, rebatizado como Parque da Ciência, e de nossas aventuras durante os primeiros curtas-metragens e seus perrengues, há algumas encarnações, nos já longínquos anos de 2008, 2009…
Em que outro contexto senão do festival, pude apreciar um clássico como A Greve do célebre cineasta russo Serguei Eisenstein na tela do cinema?
Lembrei-me das aulas do melhor professor que já tive, Hernani Heffner, diretor da Cinemateca do MAM, o cara que mais entende de cinema, falando apaixonadamente sobre filmes como 8 e1/2 de Fellini, e ao meu lado um jovem aluno, em dois cliques baixou toda a filmografia do diretor italiano no seu laptop.
Outro professor relembrou a importância de ter visto essa obra-prima em uma tela grande na estria do filme em São Paulo. À época ele morava em Salvador e como esperava o aguardado filme por anos planejou uma longa viagem até São Paulo apenas para ver o filme como devia ser visto: na tela do cinema, numa projeção em filme 35mm.
Aquela experiência o transformou: e ele lembra de cada frame de Marcelo Mastroianni voando pelos céus da Itália transformando os pensamentos autobiográficos do diretor em imagens na, talvez, mais bela representação das aflições e experiências que passam dentro da cabeça de uma alma criativa e do seu processo de criação já vistos no cinema.
No dia seguinte a aula, na faculdade, o garoto que baixou os “torrents” de Fellini, falava, com orgulho de ter visto o filme (na tela do seu computador), regurgitando frases cabeçudas e herméticas que eu mal entendia. Será que o aluno nerd e o professor tiveram a mesma experiência? É óbvio que não.
Por isso ressalto a importância desses festivais e de toda a movimentação e efervescência cultural que giram em torno deles. O filme visto no cinema é necessário. O lançamento de um livro físico numa livraria e seus debates são ainda importantes.
Como uma vez disse Dalton num famoso artigo do saudoso jornal literário Joaquim desancando o poeta paranaense Emiliano Perneta, “nossa geração não quer mais nutrir-se de equívocos que a afastem das ruas, dos homens, Emiliano caracteriza a fase incolor em nossas letras, como um poeta ausente da literatura, sem lugar no coração do povo. (…)”
E assim eu ia às ruas, para o coração da cidade, para o centro, entre a revitalizada Cinemateca e o querido Cine Passeio com uma prazerosa agonia, em dúvida se atenderia uma bela conversa numa charmosa livraria como a Arte e Letra sobre o famoso vampiro curitibano ou se presenciaria a experiência única de ver um filme de Agnès Varda na telona do cinema.
Dalton, me perdoe por favor, aqui moramos juntos na mesma cidade, e toda vez que passo na frente de seu antigo bunker do Alto da XV, faço minha comunicação íntima, espiritual e mental com você e suas obras, o que me permitiu cometer essa indelicadeza e prestar uma homenagem a minha querida cineasta. E como valeu a pena
O filme Uma Canta, A Outra Não é de uma beleza e de uma humanidade, sem igual. Daqueles que te fazem sair do cinema outra pessoa; alguém muito melhor do que o que entrou. Logo antes da sessão, parei para o necessário café, num honesto restaurante da rua Riachuelo, comandado por um nordestino bom de papo, meu novo amigo.
Na TV, as atrocidades das notícias internacionais, bombas, falas grotescas de ridículos donos do poder que nos fazem perder a fé na humanidade. Mas aí vem a pequena e brava Agnès com a história de duas mulheres porretas enfrentando misoginia dos anos 60 e 70 pelos direitos das mulheres na França.
Uma vez mais, Agnès me pegou pela mão e devolveu-me a energia necessária para seguir em frente e só assim pude desfrutar do reencontro com meu filme preferido de seu cartel: o maravilhoso Os Catadores e Eu.
Numa grata coincidência, eu selecionei esse filme como curador do Festival Cinenaguá, o ano passado, em bela sessão em Paranaguá. Dê-me uma imensa tela de cinema ao ar livre e eu te provo porque certos filmes são imortais.
Na sua primeira direção em câmera digital, com suas imagens únicas, ela faz um filme livre, que mostra tudo o que não queremos ver, mas com a sua pegada humanizadora, seu toque de leveza que tudo recupera. Como uma vez disse o grande Luchino Visconti, “devemos crer no que vemos, mas a verdade deve passar pelo crivo da arte”.
E foi assim que, mesmo pelas veredas friorentas de uma cidade que está em permanente disputa e talvez nem seja tão conservadora como pareça que recarreguei as baterias da minha fé na vida e na arte. O truque foi ter aceitado o conselho da senhora Varda.
Thiago Busse é cineasta e músico.
Parabéns Thiago Busse. Uma excelente crônica. 👏👏👏
Demais 👏🏾👏🏾👏🏾
Parabéns Thiago Busse, belo texto! Instigante! 👏🏼👏🏼👏🏼