Ela não tem medo. Muito menos do frio curitibano de 13° graus que fazia nos arredores do Teatro Paiol, em Curitiba na noite de ontem (26). Para isso, a baiana do recôncavo se vestiu com seu “capote” de pele, que a abraçava como um manto abençoado, pronto para deixar o frio de fora em uma apresentação calorosa para o público da capital paranaense.
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Sued Nunes é cheia de coragem. E isso dá para sentir na potência da sua voz: limpa, como um córrego que deságua em uma queda d’água na sequência e que atravessa fronteiras entre uma extinta timidez e uma força que exala proteção. Timidez, porque, como ela mesma disse, deve ter acontecido em algum momento ao tocar seu violão para os colegas da escola, quando ganhou seu primeiro instrumento aos sete anos de idade. Talvez nessa época, ela mal soubesse que escreveria canções tão fortes como Eixo, música aliás que abriu e fechou o show do Paiol e que fala de Exu, entidade das religiões de matriz africana que ainda carrega preconceito na sociedade.
Exu a colocou em um eixo tão certeiro que seus discos (Travessia e Segunda-feira) por si só são uma celebração dessa força que ela tanto carrega. E ao vivo, ela exala isso com primor em uma apresentação quente, capaz de deixar o curitibano mais tímido dentro de suas notas. E assim ela celebrou com músicas como Bobeira, Um Lance, Roupa Branca, Reflexo, Palavra Perdida e as surpresas pra lá de agradáveis como Jack Soul Brasileiro (Lenine), Emoriô (João Donato) e Quem Não Quer Sou eu (Seu Jorge), mostrando todas as suas referências sonoras.
Mas o destaque mesmo foi quando Sued celebrou, com violão em punhos, Lamento Sertanejo (Gilberto Gil) e A Paz é Branca. Irretocável. Uma potência que todo habitante desta pátria e amante da música brasileira deveria ouvir.
Ao final do show, tive o prazer de conhecer um pouco mais sobre Sued. Leia entrevista:
Fringe: Você falou no show que ganhou o violão do seu pai e tocava músicas com três notas? Quais eram as notas e quais eram as músicas que você tocava com essas notas?
Sued: Meu pai me ensinou Lá maior, Mi maior e Ré maior e aí eu cantava Asa Branca e Palpite. Eram as músicas que eu saia pra cima e pra baixo cantando com essas três notas, mesmo que não fizesse parte da harmonia.
Fringe: Você se sentia inserida de alguma forma, com o violão na escola? Porque querendo ou não uma pessoa com um violão faz algum sucesso.
Sued: Sim! Eu acho que o violão me ensinou a me colocar pra fora, porque uma pessoa que toca o violão e canta tem que vencer a timidez, né? E aí meu pai falava que para eu tocar violão eu ia precisar cantar, para acompanhar e não tinha ninguém do meu lado para cantar então tinha que ser eu mesma. Então eu tinha que me apresentar na frente das pessoas, falar meu nome. A música me fez não só na escola, mas em outros lugares também. Então esse processo da infância foi um desabrochar da Sued com o violão.
Fringe: E desde essa época, como você veio de lá pra cá? Como você veio construindo essa Sued de agora?
Sued: Eu ainda tô construindo ela viu? Mas assim… passos gradativos que devagar se acumulam e se tornam. Eu me encontrei como compositora nesse processo de estar com o violão na mão e estar ali, na beira do Paraguaçu no Recôncavo Baiano, pulsa muitas coisas, não só ancestralidade e a poética de uma cidade à beira do rio, mas também a poética de olhar para as águas todos os dias, já traz um olhar diferente para você. E eu fui construindo minha poética ali. E eu olho para trás e vejo o rosto de todas as pessoas dessa época que me ajudaram na minha caminhada. Eu to muito feliz que todos esses passos tenham culminado na pessoa que sou hoje.
Fringe: Sobre Segunda-feira, especificamente, tem muito de religiões de matriz africana. Você sentiu em algum momento, dentro da cena, algum tipo de rejeição ou algo do tipo?
Sued: Sim, sim… coisas são escancaradas e coisas não né? Mas a gente percebe dentro dos festivais quais são as músicas que rolam, dentro de propostas de show nas cidades, enfim… a gente tem na verdade no cenário brasileiro se pensar em Candomblé já uma rejeição, um preconceito, uma intolerância religiosa. E aí quando você traz dentro de uma música a figura mais “demonizada” que é Exu, as coisas ficam mais intensas, porque eu sinto que as pessoas aceitam as religiões de matriz africana, consomem isso, a gente tem isso dentro da musicalidade de vários cantores, mas quando a gente fala em Exu especificamente, as pessoas se retraem, muito pela forma como a colonização chegou à nossa mente, à figura cristã. Então a gente já tem essa figura no Brasil e com a música não seria diferente. É uma coisa que não me surpreende mas me deixa angustiada.
Fringe: Você falou que está vindo uma nova fase na sua carreira. Já da para soltar um spoiler do que vem por aí?
Sued: Sim. eu fiz dois discos que falam desse lugar da resistência, da mulher negra e candomblecista. E eu to sempre com os punhos cerrados nesses dois discos. Eu sinto que eu preciso mostrar minha mão solta, sabe? Eu preciso mostrar que sou leve também… que em uma entrevista aqui a gente não vai falar só de uma mulher que é potente, mas uma mulher que também é tranquila. Às vezes a gente associa sentimentos que são leves como o amor e a saudade muito para esse lugar para onde não existe força. E há muita força nesse lugar. Então eu quero colocar na mesa essa Sued que é plural, que quer falar de um batuque que é histórico na música brasileira, que veio de África, mas também pode falar de uma borboleta que passou aqui pelo camarim e foi embora.
Fringe: E como foi o show de Curitiba para você?
Sued: Ah, o show de hoje foi muito especial. Não tinha vindo em Curitiba ainda, nem tocado no Paiol. Então foi a junção de duas coisas que são fortes pra mim, que é vir pro lado de cá e ver pessoas que gostam do meu trabalho. Ver as pessoas cara a cara não tem preço. Então hoje foi muito aquela questão de me baquear e pensar: poxa, Curitiba também olha pra mim. Me senti muito abraçada aqui.