Por Gabriel Costa
Raul Seixas não foi um homem simples. Resumi-lo é ignorar as muitas influências, vivências e situações que marcaram seus 44 anos de vida. Raul foi um homem que viveu à sua maneira. E que maneira!
No dia 28 de junho de 1945, Raul Seixas veio ao mundo. Um bebê do pós-guerra, alguém que nasceu com todos os sonhos do mundo dentro de si, mesmo que ainda não soubesse. Sua família fazia parte da classe média de Salvador — curiosamente, eram conservadores. O interesse de Raul por temas holísticos não surgiu do nada: desde a infância, seu pai lia sobre metafísica, reencarnação, morte e juízo final.
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A intelectualidade do pai aguçou sua curiosidade. Passava horas lendo na biblioteca da família. Quando não estava lá, ia ao Cantinho da Música, uma loja de discos onde ouvia o ainda pouco conhecido rock and roll.
Por outro lado, foi sua mãe quem lhe deu o primeiro violão. Essas influências foram decisivas para guiá-lo ao lado artístico da vida. Enquanto jovens da época sonhavam em ser doutores ou advogados, Raul queria ser cantor… ou escritor.
Apesar de sua facilidade fora do comum com leitura e escrita, Raul reprovou três vezes na escola. Declarou até o fim da vida que odiava ter que ficar sentado numa sala de aula. Queria saber de música, livros e da arte da rebeldia — algo que dominou enquanto pôde.
Começo na música
A casa da família ficava ao lado do consulado americano em Salvador. Ainda jovem, Raul conheceu Elvis Presley e Little Richard — duas de suas maiores influências. Em 1958, criou com o irmão o Rock Boy Club, que depois virou Elvis Rock Club, ao lado do amigo Waldir Serrão. O clube funcionava como uma espécie de gangue: procurava brigas, fazia arruaça, roubava bugigangas e quebrava vidraças.
O primeiro grupo que Raul tocou surgiu desse clube de fãs de Elvis. Em 1962, formou “Os Relâmpagos do Rock”, banda que fez barulho na capital baiana. Assim como o Rei do Rock, Raul e seus companheiros chocavam o público com apresentações escandalosas.
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Talvez pelo choque, talvez pela novidade, Os Relâmpagos começaram a ser requisitados. As apresentações deixaram de ser hobby e viraram rotina. Ainda em 1962, se apresentam na TV Itapoã — gravação histórica que integra o álbum O Baú do Raul (1992).
O sucesso obrigou o grupo a crescer — e trocar de nome. Primeiro virou The Panthers, com Mariano Lanat, Carleba, Carlô, Thildo e Raul, e depois, “Os Panteras”.
Nesse período, Raul vivia um turbilhão emocional. Apaixonou-se por Edith Wisner, filha de pastor evangélico que não aprovava o relacionamento. Para provar seu valor, Raul prestou vestibular para Filosofia, Direito e Psicologia — e passou em todos. Com isso, casou-se com Edith, em 1967.
Rio de Janeiro
Mas a vida acadêmica durou pouco. Em 1968, abandonou tudo e partiu com a esposa e um violão rumo ao Rio de Janeiro, determinado a se tornar uma estrela do rock.
O primeiro disco veio nessa época: Raulzito e os Panteras, uma chance de ouro que fracassou. Nem público nem crítica se empolgaram. Um começo blasé, muito distante do tom incendiário que marcaria o resto da carreira.
Com o fracasso, Raul e a banda enfrentaram sérias dificuldades no Rio — fase narrada com maestria no clássico Ouro de Tolo. O menino da classe média de Salvador, aluno do colégio Marista, conheceu a fome. E isso mudou para sempre a forma como enxergava o mundo.
De volta a Salvador, viveu momentos de profunda melancolia. Passava dias trancado no quarto com um papel e uma caneta na mão. Mas foi nesta situação que a maré mudou de lado. Conheceu um produtor da CBS na Bahia, e logo juntou as malas e voltou à cidade maravilhosa.
Na CBS, trabalhou como produtor musical, e criou laços e parcerias importantíssimas para poder despontar em sua carreira. Na época, escrevia letras para diversos artistas de peso, como Baltazar e Jerry Adriani.
Krig-ha, Bandolo!
Foi em 1972 que a vida de Raul mudou para sempre — consequentemente, o Brasil também. Decidiu participar do Festival Internacional da Canção, convidado por Sérgio Sampaio. Raulzito inscreveu duas canções: Let Me Sing, Let Me Sing e Eu Sou Eu e Nicuri é o Diabo. Ambas foram finalistas, o que lhe rendeu um contrato na gravadora Philips, podendo finalmente interpretar suas próprias letras.
Logo no seu primeiro álbum na nova gravadora, teve um sucesso estrondoso. Krig-ha, Bandolo! trouxe alguns dos maiores sucessos de Raul, como Metamorfose Ambulante, Ouro de Tolo e Mosca na Sopa, o que enfim lhe alçou ao status de rockstar. O Raul dos Relâmpagos e dos Panteras agora era o Pai do Rock Brasileiro, a lenda, uma entidade. Mas foi na mesma proporção que sua vida pessoal passou a se complicar.
Sociedade Alternativa e Ditadura
Em 1974, Raul Seixas e o escritor Paulo Coelho formaram a Sociedade Alternativa, baseada nos livros do bruxo inglês Aleister Crowley. O objetivo era construir uma civilização baseada na Lei de Thelema: “Faze o que tu queres há de ser o tudo da Lei”.
Paulo Coelho e Raul Seixas sonhavam alto. Chegaram a comprar um terreno em Minas Gerais para a construção da Cidade das Estrelas. Ao mesmo tempo, em suas músicas, promoviam a ideia da Sociedade Alternativa.
Essa empreitada chamou atenção do DOPS, órgão da ditadura militar. Foram presos, censurados e exilados nos EUA. O sucesso do disco Gita foi tão grande que a repressão não teve escolha: Raul teve que ser trazido de volta ao Brasil.
A separação de Edith veio logo após, e um novo casamento com Glória Vaquer foi oficializado. O álbum Novo Aeon não foi bem recebido, mas 10 Mil Anos Atrás recuperou seu prestígio, marcando o fim da parceria com Paulo Coelho e com a gravadora Philips.
Anos 80 – Charrete que perdeu o condutor
Raul chegou aos anos 1980 com saúde abalada, depressão e dificuldade de manter o sucesso comercial. Mesmo assim, lançou o disco Abre-te Sésamo e enfrentou mais censura. Em 1982, em Caieiras (SP), protagonizou o episódio em que o público achou que ele era um sósia bêbado. Era ele mesmo. E essa imagem virou mito.
Entre internações e recaídas, voltou aos holofotes com Cowboy Fora da Lei, hit de 1986. Sua última turnê foi ao lado de Marcelo Nova, em 1989. No mesmo ano, lançou A Panela do Diabo. Dois dias depois, em 21 de agosto, foi encontrado morto em sua cama.
Raul viveu como quis. Viveu como ninguém. Vive ainda.
Toca Raul
Raul vive. Vive todas as vezes que alguém lembra de uma música ou letra, história ou fato curioso. Raul vive. E vive principalmente naqueles que decidiram continuar o seu legado. Naqueles que veem em suas canções uma maneira de se sentirem eternos. Um dos grandes continuadores da obra de Raul é Tony Gambel. O artista maranhense que tem uma similaridade impressionante, de timbre, postura e intenção, com Raul. O Fringe falou com ele sobre isso:
Entrevista com Tony Gambel
Você é considerado um continuador de Raul. Como você vê isso?
O fato de ter uma voz parecida com a do Raul e de escrever de um jeito tão sofisticado quanto, fez com que as pessoas entendessem que eu sou uma continuação do Raul. Não é algo que me propus, foi um título carinhoso que as pessoas passaram a me atribuir, e que sou muito grato. Sempre gosto de dizer que o Raul foi meu professor de canto. Quando comecei a escutar Raul, ficava imaginando a posição que ele estava fazendo para executar determinado tipo de técnica. Tipo os drives ou falsetes. E baseado nessa minha imaginação fui aprendendo a fazer a execução dessas técnicas com maestria. Mas desde antes de cantar Raul, já diziam que eu tinha uma voz parecida com a dele. Desde criança, quando não sabia nada de música, já diziam isso. Acredito que é por causa disso que entendem como uma continuação.
Te incomodam os pedidos de “Toca Raul”?
Não me incomodo com isso, de forma alguma. Mas não escuto tanto essa expressão, já que toco Raul de uma forma muito involuntária. Tenho um repertório muito extenso, toco Raul, Reginaldo Rossi, toco músicas que todo mundo conhece. Então não me incomoda. Acho do caralho isso aí.
Qual a importância do Raul na sua vida?
Tanto artisticamente quanto intelectualmente é praticamente toda. Não sou de família de músicos. Conheci o Raul de forma acidental, e foi justamente esse acidente que me deu essa vontade de me expressar através da música. Me moldou para eu ser quem eu sou hoje. Não conheço um artista do Brasil que tenha essa unanimidade. Vou de Cássia Eller, Zé Ramalho, Skank, Titãs e de repente não estou conseguindo arrancar aplausos. Aí penso: já sei! Meto um Ouro de Tolo e arranco aplauso na mesma hora. É unânime a aceitação desse cara. Gil e Caetano, por exemplo, são artistas de elite. Dificilmente você vai ver um cara em um barzinho de esquina da plebe com uma dose de pinga com limão ouvindo Gilberto Gil. Não vai, pô. O Raul não. O Raul tá em todos os departamentos. Na elite, no popular. O Raul tá na boca do povo.