Nascido em São Paulo, na experiência do concreto urbano, mas de alma que aponta para o mar, por ter passado grande parte da vida no litoral — é como o paulistano Pedro Iaco define as duas faces do fio condutor criativo de sua vida. E nesta dualidade sugestiva encontramos os caminhos de ‘Sangria’, novo disco do cantor e compositor, já disponível em todas as plataformas digitais.
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O disco traz participações especiais de Hansi Kürsch e Marcus Siepen, vocalista e guitarrista do Blind Guardian, do Ensemble SP, do pianista André Mehmari e da violonista e compositora Elodie Bouny, que também arranja e produz o disco.
A fúria urbana traduzida em catarse se mistura à calmaria das ondas do mar em linhas que vão da música erudita, passam pelo violão popular, transitam pelo choro e desembocam na música flamenca e cigana com DNA ibérico, características fundamentais da música de Pedro Iaco, cujo nome artístico foi escolhido por Guinga e era um dos nomes de Dionísio na Grécia antiga.
A canção “Sangria”, homônima ao disco, é a escolhida para abrir o trabalho. Como um jorro de sangue que tinge os ouvidos, a música nos convida a uma inflexão sobre a celebração do existir, bem como a espiritualidade que se entrelaça também nos caminhos da morte.
O clamor pela batalha, pelo passo adiante, são trazidos aos ouvidos pelos versos “ a cada um de nós que tomba, dez milhões virão”, que vestem a canção do espírito guerreiro que carrega o artista, nos preparando para o restante da obra.
“Vênus”, canção seguinte, nos imerge na própria natureza afetiva do planeta para a mitologia, que é retratada por uma harpa com a voz doce de Luísa Lacerda, em dueto com Pedro Iaco.
A valsa “Deus Sol” também é parte das águas do mar que inundam o compositor. Com uma mensagem de esperança, a ode ao astro-rei é feita de versos que clamam ao Sol que volte a iluminar seus filhos que tanto precisam de luz.
Única faixa em inglês, “Moonvow (The Wind Blows)” tem participação especial dos lendários Hansi Kürsch e Marcus Siepen — vocalista e guitarrista da banda alemã de metal Blind Guardian. A canção narra a história de uma pessoa que, ao cair do luar, se transforma em lobo. Os arranjos foram feitos em contrastes com uivos e trazem Pedro dividindo os vocais com Hansi.
“Enquanto eu canto e toco, muitas vezes sinto e percebo cores dentro de mim. E essa aquarela sensorial acaba sendo uma guia, que me ajuda a entender por onde ir: onde clarear, onde escurecer, mais ou menos vermelho, azul ou amarelo. É como se pra mim a voz fosse um pincel e a música uma verdadeira pintura”, diz o compositor paulistano.
Em “Valsa do Apocalipse”, Pedro nos convida a experimentar o pulso da morte como saída para compreender a vida. Composta durante a pandemia, a canção entoa uma espécie de oração caótica nas vocalizações de Mû Mbana, que, em dueto com Iaco, nos traz uma experiência única em que as linhas de cravo, compostas por André Mehmari, sugerem desespero, exasperação, libertação e sonho. Aqui, traduzindo o momento mais agudo da pandemia, a canção se transfigura em um trilho com direção às camadas mais densas da existência, em que o desespero humano foi de fato levado a seu ponto máximo.
Como as ditas ondas do mar, “Coraçãozinho” alude ao lado do compositor onde habita a calmaria. Entre solfejos e um violão cadenciado, a canção resulta em uma espécie de esperança ao apocalipse que fora mostrado na canção anterior.
“Sol do Meio-Dia” e “Sol da Meia-Noite” evocam a sensação de que os dias e as noites eram partes do mesmo todo durante a pandemia, época em que as canções foram compostas. Propositalmente colocadas no início e no fim do disco, as duas canções trazem o artista em uma mensagem de consagração final, onde encontraríamos a paz, mas sem deixar que a angústia dessa estrada nos arrebatasse de forma visceral e muitas vezes perturbadora— sentimentos universais à época.
“O Vôo do Espírito Livre” encerra o disco nos convidando a entender o sangue dos povos que nos originaram — indígenas, africanos e europeus —, apontando para um futuro em que o Brasil como ator principal toma as rédeas e a consciência de sua formação e pode, então, promover um abraço universal, cosmopolita, diverso, humano e que transcenda as barreiras das nossas diferenças e, por fim, nos conecte pela nossa cosmogonia.
‘Sangria’ é um grito de liberdade em sua mais plena amplitude. Como se Pedro Iaco buscasse no âmago da sua sensibilidade investigar as mais desesperadoras emoções humanas guardadas de maneira profunda.