Por Luiz Prado do Jornal da USP

No dia 25 passado, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP homenageou o músico Tom Zé pelo conjunto de sua obra e por sua contribuição à cultura brasileira. Trata-se do primeiro reconhecimento desse tipo concedido pelo instituto a um artista popular.

A tarde era uma das mais frias do ano e só faltou a garoa para completar o clichê da Pauliceia que o baiano de Irará, na Bahia, escolheu para viver há mais de cinco décadas. Mas, do alto de seus vigorosos 88 anos, Tom Zé não parecia se importar com os termômetros. Estava feliz. E fez questão de que a homenagem contasse também com um pequeno show. Suas canções falam por ele.

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Enquanto o público tomava lugar no Auditório István Jancsó do Complexo Brasiliana, na Cidade Universitária, uma projeção no palco reunia as capas de vários álbuns de Tom Zé. No centro da tela estava o primeiro disco, de 1968, com suas cores de pop art que não deixavam dúvidas acerca da filiação do artista ao movimento tropicalista. Todos os Olhos, de 1973, não poderia faltar, com sua debochada fotografia do mais escondido dos olhos humanos. E sobrava também espaço para seu retrato sombrio de Correio da Estação do Brás (1978) e a ênfase absoluta na palavra de Língua Brasileira, de 2022.

Nas caixas de som, suas canções iam preparando o público. Entre estudantes, funcionários da Universidade e admiradores, estavam lá também amigos músicos e professores: Luiz Tatit e José Miguel Wisnik, docentes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Tiganá Santana, Flávia Toni e Walter Garcia, professores do IEB. Quem não havia feito sua inscrição aguardava a liberação dos lugares vagos, aos poucos escasseando.

Antes do início da cerimônia, sou surpreendido pela presença do próprio Tom Zé, que se senta ao meu lado, na última fila do auditório, meio ao acaso, aguardando ser chamado. Já havíamos nos conhecido meia hora antes, na exclusiva feita nos bastidores (leia o texto abaixo). Isso explicava a familiaridade. Comento que estou olhando as capas dos álbuns lá na projeção, tentando organizá-las cronologicamente. Ele passeia a vista pelo mosaico e procura o trabalho mais recente, Língua Brasileira. Seu interesse é pelo novo: Tom Zé nunca teve os olhos voltados para o passado.

Quando chega a hora, ele sobe ao palco aos versos de Quando Eu Era Sem NinguémQuando eu era sem ninguém/ e não tinha amor nenhum/ o meu coração batia, ô maninha/ tum, tum, tum.” A canção é levada por um público meio desajeitado mas animado, que recebeu uma pequena cola com a letra e quer demonstrar o carinho pelo ídolo. Seguem-se os aplausos e as ovações, esses sim mais confiantes e entusiasmados.

“A homenagem engrandece muito o IEB e a Universidade de São Paulo”, declara a diretora do instituto, professora Monica Duarte Dantas. Em seguida, a pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária da USP, professora Marli Quadros Leite, também não poupa elogios. “A música de Tom Zé marcou muitas gerações”, crava Marli. “Hoje nos reunimos para homenagear um artista que não apenas canta o Brasil. Ele o reinventa a cada verso.”

A pró-reitora justifica sua fala propondo uma análise da canção Língua Brasileira. Para Marli, nessa letra Tom Zé transforma  a história da língua em poema de resistência. “Sua língua brasileira é assim, um gesto de amor crítico”, diz a professora. “Homenagear Tom Zé é reconhecer que ele nos ensina a ouvir de outra forma.”

Homenagem a Tom Zé reconhece importância de sua obra e contribuição para a cultura brasileira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Quando me sorris,
Visigoda e celta,
Dama culta e bela,
Língua de Aviz…

Fado de punhais
Inês e desventuras,
Lá onde costuras,
Multidão de ais.

Mel e amargura,
Fatias de medo,
Vinho muito azedo,
Tudo com fartura.

Cravos da paixão,
Com dores me serves,
Com riso me pedes
Vida e coração,
Vida e coração.

Babel das línguas em pleno cio,
Seduz a África, cede ao gentio,
Substantivos, verbos, alfaias de ouro,
Os seus olhares conquistam do mouro.

Mares-algarismos,
Onde um seu piloto
Rouba do ignoto
Almas e abismos.

Verbo das correntes
Com seu candeeiro
Todo marinheiro
Caça continentes.

E o gajeiro real,
Ao cantar matinas,
Acha três meninas
Sob um laranjal.

Última das filhas,
Ventre onde os mapas
Bordam suas cartas
Linhas Tordesilhas,
Linhas Tordesilhas.

Em nossas terras continentais
A cartomante abre o baralho,
Abismada vê, entre o sim e o não
Nosso destino ou um samba-canção.

Em seguida, Maria Iracema da Silva, funcionária do IEB, sobe ao palco para ler a mensagem de um amigo que não pôde comparecer. Faz mistério da identidade. No texto, o redator declara que a música de Tom Zé realiza “um catequismo popular que desperta a consciência crítica”. Os termos da sentença são quase uma assinatura de seu autor: Frei Betto. Tom Zé sorri.

Depois é a vez de Tiganá Santana tomar o microfone para ler um texto preparado pelo professor Guilherme Grandi, da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP. Fã de Tom Zé e integrante do bloco carnavalesco paulistano Abacaxi de Irará, que presta homenagem ao baiano, Grandi ficou nos bastidores e deixou a voz grave de Santana ecoar pelo auditório.

“Tom Zé”, declarou o orador, “é um artista singularmente complexo e musicalmente inventivo, um compositor poeta-trovador que consegue, por meio da sua obra musical, fundir os diversos elementos que compõem a multifacetada cultura popular brasileira”. O professor lembrou sua mistura de elementos rítmicos e sonoros, indo do folclore nordestino à música caipira, do rock’n’roll à música contemporânea de vanguarda, fugindo dos modelos e gêneros musicais preestabelecidos.

“Por meio da sua cosmovisão sonora, Tom Zé parece ter sempre a intenção de fornecer aos ouvintes uma interpretação do que significa ser brasileiro, do seu sentido, dilemas e contradições”, dizia o texto lido por Santana. “Tom Zé nunca foi convencional. Sua arte disruptiva é uma verdadeira obra-prima da sua cosmovisão tropicalista. Sorte a nossa, sorte do povo brasileiro, poder contar com um artista tão gigante, tão único, tão excepcional como esse baiano de Irará.”

As sentenças carinhosas são seguidas pela materialidade de uma placa entregue ao homenageado, com esta frase estampada: “O Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo homenageia o artista Tom Zé pelo conjunto da obra e sua contribuição para a cultura brasileira”.

Tom Zé posa com a placa de homenagem ao lado de (da esquerda para a direita) Luciana Suarez Galvão, Tiganá Santana, Marli Quadros Leite e Monica Duarte Dantas – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Com a palavra, Tom Zé comunica que Guimarães Rosa, mentor estabelecido em sua juventude, está presente, ao lado de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. “Cada acervo guardado é uma célula de nossa raça”, disse o músico, referindo-se ao IEB. É o agradecimento do imigrante de Irará à Pauliceia marioandradiana, que adotou como lar fincado nas ladeiras do bairro das Perdizes.

Seu breve discurso abre espaço para um pocket show. De pé, dançando e gesticulando, Tom Zé mostrou a energia que o microfone, o palco, a plateia e a música lhe dão. Estava visivelmente à vontade, quase em casa. Entre um clássico e outro, como Augusta, Angélica e Consolação e Parque Industrial, pedia pausa, interrompia a canção, contava alguma história e recomeçava acompanhado pelo coro da plateia.

“Vou ficar vários dias com o coração pulsando lá em casa porque não é brincadeira receber esse prêmio do IEB.” Foi sua despedida do palco, para ir ao encontro dos amigos que faziam fila para cumprimentá-lo. Do lado de fora do auditório, a noite até parecia menos gelada.

Um intérprete do Brasil

A homenagem a Tom Zé é um passo que o IEB dá para se aproximar da sociedade civil. Há dois anos, o instituto iniciou um projeto de residência artística nesse sentido, interessado em fomentar a criação artística a partir de seu acervo. Agora, o reconhecimento ao artista baiano avança com a proposta do IEB de pensar o que pode ser entendido como uma produção digna da academia.

Quem explica isso é Luciana Suarez Galvão, professora do instituto, também integrante do bloco Abacaxi do Irará e idealizadora da homenagem. Esse tipo de iniciativa, para Luciana, pode mudar a maneira como o acervo do IEB é compreendido e utilizado. “Entendo que a obra de Tom Zé representa a pluralidade que vemos no brasileiro”, comenta. “Sua obra pode ser enquadrada como estudos brasileiros, e alguns trabalhos já consideram Tom Zé como um intérprete do Brasil.”

Uma rápida busca nas bases de dados do instituto basta para encontrar estudos a respeito do músico. Em 2018, Patrícia Anette Schroeder Gonçalves defendeu a dissertação de mestrado Três Ensaios sobre a Tropicália de Tom Zé: Da “Era dos Festivais” à “Era dos Editais”. Já Leilor Miranda Soares apresentou o trabalho de mestrado “Batiza Esse Neném”: Mercado, MPB, Samba e Processo Social em Estudando o Samba, de Tom Zé”. Ambos foram orientados pelo professor Walter Garcia.

Tropicalista fiel

Tom Zé nasceu Antonio José Santana Martins em 11 de outubro de 1936. Natural de Irará, no interior da Bahia, cresceu escutando Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, sambas de roda e os astros do rádio. Descobriu o violão aos 17 anos.

Em 1962, foi aprovado na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Lá estudou com nomes importantes da vanguarda musical, como Hans-Joachim Koellreutter, Ernst Widmer, Walter Smetak e Piero Bastianelli. Em 1964, sobe ao palco ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa – na época conhecida como Maria da Graça – em apresentações que seriam o embrião do movimento tropicalista.

Um ano depois, com o sucesso local dos shows, Tom Zé viaja para São Paulo para participar ao lado dos colegas de Arena Canta Bahia, dirigido pelo dramaturgo Augusto Boal. Não seria a vinda definitiva para a capital paulista: Tom Zé opta por voltar a Salvador e concluir o curso na UFBA. Lá trabalha como jornalista e se torna professor de contraponto e harmonia na própria Escola de Música. Atua também como violoncelista da Orquestra Sinfônica e da Orquestra de Estudantes da universidade.

O retorno a São Paulo acontece para valer em 1968. É um ano fundamental em sua carreira artística. Na capital paulista, o empresário Guilherme Araújo o batiza definitivamente como Tom Zé. Deixava de ser o “Toinzé” dos tempos de moço. De alcunha nova, vence o 4o Festival de Música Popular Brasileira com São São Paulo e ganha também o prêmio de melhor letra com 2001, música feita em parceria com Rita Lee.

São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
São oito milhões de habitantes
De todo canto e nação
Que se agridem cortesmente
Correndo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Gaseados a prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito


São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo o centro da cidade
Armadas de ruge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
O palavrão reprimido
Um pregador que condena
Um festival por quinzena
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito

São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor
Santo Antonio foi demitido
E os ministros de Cupido
Armados da eletrônica
Casam pela tevê
Crescem flores de concreto
Céu aberto ninguém vê
Em Brasília é veraneio
No Rio é banho de mar
O país todo de férias
E aqui é só trabalhar
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito

São São Paulo quanta dor
São São Paulo meu amor

Foi em 1968 que participou do mítico Tropicália ou Panis et circensis, disco-manifesto em que é acompanhado por Caetano, Gal, Gil, os Mutantes e Nara Leão. Aparece na capa carregando uma mala de viagem, como se acabasse de chegar àquela festa musical. Assina Parque Industrial, comentário sobre a vertigem das transformações modernizadoras do Brasil. Como se fosse pouco, o ano trouxe também seu primeiro disco solo, subtitulado Grande Liquidação.

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Amigos e admiradores lotaram o auditório István Jancsó para ver e homenagear o músico baiano – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.
Tem garota-propaganda
Aeromoça e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz
Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.

Após essa estreia impactante, contudo, Tom Zé amargaria dificuldades para ser reconhecido pela crítica e o grande público. Seu estilo de composição e suas experimentações foram alienando os ouvintes, e os discos lançados nos anos 1970 não conseguiriam o mesmo êxito dos outros colegas tropicalistas.

Foram mais de 15 anos de uma carreira de guerrilha, na qual era contratado por estudantes universitários e animava festas de centros acadêmicos da capital e do interior de São Paulo. Apesar de as possibilidades de gravar um disco minguarem, a fonte de criatividade continuou abundante. Nessa época começou a construir instrumentos musicais, de nomes esotéricos e bem-humorados como “hertzé”, “enceroscópio” e “buzinório”. Jornais, máquinas de escrever, enceradeiras, furadeiras, aspiradores de pó, liquidificadores, canos de PVC e martelos foram apenas algumas de suas matérias-primas.

“A trajetória de Tom Zé, para alguns, acabou sendo dessa maneira porque ele se manteve mais fiel a esse espírito tropicalista, que muitas vezes não é fácil de ser apreendido”, comenta a professora Luciana Galvão. “Sua música não é óbvia, ela nos dá trabalho. Não é uma música que você absorve rapidamente, à primeira vista. Porque ela é complexa na sonoridade, na letra.”

Tudo mudaria no final dos anos 1980. O músico David Byrne, fundador da banda Talking Heads, caiu na armadilha de arame farpado e cordas da capa de Estudando o Samba, o álbum de 1976. O estadunidense nascido na Escócia estava no Rio de Janeiro e achou aquela capa inusitada para um álbum que deveria ser de samba. Onde estavam as mulheres de biquíni e outros clichês? Comprou o disco e, quando ouviu, ficou embasbacado.

Byrne enviou uma carta para Tom Zé anunciando o interesse de lançar um disco do brasileiro pelo seu selo, o Luaka Bop. A coletânea, que chegou às lojas em 1990, recebeu ampla aprovação e foi considerada um dos melhores discos do ano pelo The New York Times. Seria só o começo. No final da década, o álbum estaria também na lista de melhores da revista Rolling Stone.

A partir daí, o artista até então esquecido começa a aparecer na mídia especializada, tendo seu nome acompanhado de adjetivos superlativos e elogiosos, como gênio e excepcional. Vai para os Estados Unidos e a Europa em turnê e volta a gravar. Em 2006, com seu nome recolocado no panteão da MPB, ganha o filme Fabricando Tom Zé, documentário de Décio Matos Jr. sobre sua vida e obra.

As homenagens e reconhecimentos se acumulam. Mais recentemente, em 2022, foi eleito para a Academia Paulista de Letras. Ano passado, a Faculdade de Direito (FD) da USP antecipou o IEB, concedendo a Tom Zé diploma de honra e medalha por sua contribuição cultural e criativa para o País. No dia 17 passado, seu álbum Tropicália Lixo Lógico, de 2012, foi tema de uma exposição do professor e escritor Christopher Dunn, da Universidade de Tulane, de Nova Orleans, nos Estados Unidos, realizada na FFLCH.

Com os 90 anos preparados para serem comemorados em 2026, Tom Zé não dá sinais de querer parar. Melhor para o Brasil.

Sobre balcões de loja, mesas de jantar e cupins
bate-estaca: uma conversa com Tom Zé

Tom Zé havia feito a passagem de som para sua apresentação e estava para tomar um café quando cheguei. Pedi alguns minutos de conversa, mas sua esposa, Neusa Marins, disse que era muito. Disse que Tom Zé precisava se concentrar. Negociei, argumentei, fiz o papel de jornalista. Acertamos uma entrevista breve ali mesmo.

A simpatia de Tom Zé é, para usar sem medo um termo superlativo, assombrosa. Ele parece conversar com um amigo antigo. Atencioso, dedicado, descontraído. Aquilo tudo que transparece nas tantas outras entrevistas dele por aí. É de verdade.

Quero saber o que ele pensa de ser reconhecido como um intérprete do Brasil, como disse a professora Luciana Suarez Galvão, do IEB. Tom Zé explica que esse seu lado vem de muito tempo atrás, desde a infância, para ser mais exato. Resultado da sua curiosidade por tudo que acontece ao redor somada à incrível capacidade de conhecer e aprender.

Ele conta que tudo começou quando trabalhava na loja do pai, em Irará, no Recôncavo Baiano, vendo as pessoas simples e analfabetas da roça. “Não sei por que maravilha, na loja inventei de aprender a língua deles. Uma vez por ano faziam compra, meu pai vendia fiado. Eles plantavam fumo, vendiam o fumo e se não vendiam meu pai não recebia, até chover e ter fumo. Veja que mundo! De repente, tive a curiosidade de aprender a língua que eles falavam. Fiquei lá na loja, prestava atenção, tomava nota, perguntava uma ou outra coisa que não entendia. Começava a controlar a sintaxe. A coisa mais difícil era a construção da língua.”

Logo esse aprendizado mostraria seu valor nos mais (aparentemente) inesperados lugares. “Muito bem. Quando abri um livro de Guimarães Rosa, comecei a ler com a maior tranquilidade. ‘Você está lendo isso aí, como? Mentira, você não está lendo, não entende nada disso aí!’. Pois era a língua do meu povo, da roça!”

Interesse pelos de fora, interesse pelos parentes. A atenção do garoto Toinzé podia ser despertada de várias maneiras, em muitos lugares. “Tive curiosidade de aprender outra língua também. Meus tios eram universitários. Meu avô, por acaso, tinha botado os filhos para estudar. Lá nem rico não botava, e meu avô botou, até as moças. O jantar na casa do meu avô era às 6 horas da tarde. Acaba o jantar, fico na mesa ad aeternum conversando coisas com esses tios, falando a língua universitária. Foi a segunda língua em que comecei a prestar atenção. Ficava vidrado naquilo.”

De noite, o garoto repassava o aprendizado, como se fizesse uma lição de casa. “Veja como se forma o intelecto. Quando dava 9 horas da noite, alguém me pegava: ‘Criança acordada 9 horas da noite, que escândalo, vai dormir!’ Aí me botavam para dormir em algum quarto da casa, mas eu não ia. Ficava repassando o que tinha ouvido para ver se o que eu pensava tinha lógica. Se já tinha aprendido aquelas palavras.”

Se a língua fascinava o jovem Tom Zé, à medida em que a música entrava em sua vida, os assuntos do mundo à sua volta também começaram a encher sua bagagem criativa. É a partir de mais uma história que ele conta como despertou para a maneira de encontrar os assuntos de suas canções.

“A primeira namorada que tive. Aquela coisa de namorado, pegar na mão: ‘Soube que você toca violão e faz música’. As músicas eram todas feitas para ela. Mas aconteceu o seguinte: fui para a casa de um amigo – porque não podia ir para a casa dela, não tinha isso, o pai não deixava – e não consegui cantar nenhuma música. Naquele dia saí com o violão na mão e falei: ‘Nunca mais pego essa banana desse violão! Olha meus dedos, como estão inchados da luta para tocar essa porcaria e depois ter essa decepção!’ Entrei certo de que realmente nunca mais faria uma música.”

A amargura, contudo, não demorou a se revelar trampolim para seus voos criativos. “Veja bem. Música, naquele tempo, era uma coisa geralmente de amor fracassado. Todas as coisas que tocavam no rádio eram generalizadamente isso, de amor fracassado. Música era vida infeliz. Nas músicas que eu fazia para ela, tinha alguma coisa disso. Mas quando falei ‘Não faço mais nenhuma música na vida’, comecei a pensar em outra coisa. Achei que tinha abandonado a música, mas não tinha. Quando acontecia alguma coisa na cidade, eu pensava ‘Posso fazer música com esse assunto’. E fazia. A música de hoje, faço todas do mesmo jeito que fazia naquele tempo.”

Pergunto por que ele acha que sua música, fruto dessa curiosidade que vem da criança pelas palavras, pelos acontecimentos e pelo entorno, sempre foi tão bem recebida nos meios universitários. Afinal, a homenagem do IEB é só o capítulo mais recente de uma relação antiga.

“Isso tem razão de ser porque a vida universitária é uma fase em que o interesse pelo envolvente é muito maior do que o interesse pelo contemplativo”, argumenta Tom Zé. “A vida que envolve a pessoa, as opiniões que circulam, os livros mais lidos, tudo isso tem uma certa presença no ambiente universitário com muito mais força do que depois. Essa é a resposta. Porque estou sempre procurando, eternamente, a coisa do dia. Todas as músicas são um convite para levar em consideração o que você está vendo e o que não está.”

Tom Zé entende que minhas perguntas querem, mais do que encontrar suas opiniões, iluminar um pouco do artista capaz de fascinar gerações com um trabalho sempre inovador, em movimento, provocativo. De onde vem esse manancial de energia criativa? Antes de nos despedirmos, ele volta a falar da venda do pai, em Irará. Lembra que a loja atendia as pessoas da pobreza, da miséria e da fome. Mas também de uma visão única de mundo.

“Tem um caso que ilustra como era a cabeça daquele povo”, começa Tom Zé. “Tem um cupim que vai buscar o alimento muito longe do lugar em que mora. Quando ele volta, se no caminho tiver caído um galho, ele não faz a volta. Fica batendo a cabeça. E lá o silêncio é tão grande que as pessoas acabam ouvindo. E esse cupim passou a ter o nome de cupim bate-estaca, porque não fazia uma voltinha para ir ao lugar onde morava. Então, no balcão da loja, a educação ia se amontoando com esses tipos de coisa, que depois acabavam sendo uma maneira de raciocinar. É uma coisa que me ajudou muito.”

E como que para apaziguar o olhar ansioso do jornalista em busca de compreensão: “Quando eu cantar a gente vai se entender melhor”, finaliza, confiante no quanto suas canções falam por si mesmas.

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