Por Selma Boragian, no Jornal da USP

Para reviver e lembrar dos detalhes, escrevi as lembranças das três visitas que fiz ao cantor e violonista João Gilberto, a convite de Fernando Faro e Edinha Diniz, por volta de 2004. E porque acredito que sua simpatia e seu temperamento vivo deveriam ser mais divulgados.

O quadro em branco, tela emoldurada em destaque no centro do móvel que ocupava toda a parede, chamou a atenção logo que entrei na sala de João Gilberto. Depois de algumas horas, o que parecia estranho ganhou sentido: representava o silêncio. O vazio, onde tudo se inicia.

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Eu esperava conhecer um gênio excêntrico, por todo o folclore que o envolvia, e conheci um homem comunicativo e hospitaleiro, vibrante, expressivo, atento.

Tudo ali tinha sentido: a mesa lotada de  pacotes do correio, as fotos dos filhos, as partituras, o violão sempre por perto.

“Selminha, vou fazer um drink pra você. Mas é sem álcool.” Então pegou um daqueles copos grandes, encheu de gelo e completou com guaraná de laranja, dizendo, “eu gosto da cor, fica bonito”. Me entregou sorrindo.

Nos ofereceu, a mim, a Fernando Faro e a Edinha Diniz, os últimos goles de seu licor predileto, o vinho e o prato prediletos.

Quer saber os segredos de seu violão? “É assim, encadeando os acordes como se cada voz fosse de um cantor, atenção para a voz mais aguda…”, e ia tocando e mostrando. Não tinha segredo. Cantar? É treino. É um músculo. Não se deve atrapalhar a melodia, o entendimento da letra.

O apartamento era seu escritório, dizia. Trabalhava mais que oito horas por dia. “Eu não sou gênio, gênio foi Bach.”

Às vezes deixava o violão no sofá e falava, andando pela sala, com muita desenvoltura e carinho, dos amigos, das lembranças, dos compositores, dos grupos vocais: “A gravação de Trem de Ferro dos Quatro Ases e Um Coringa é muito superior à minha… o arranjo com aqueles vocais imitando um trem…”

Tocou sua parceria com Donato, Minha saudade. Contou sobre o projeto de Arnaldo DeSouteiro para gravar um songbook com sua obra; falou dele com admiração e carinho, como falou de outros amigos e artistas, Rita Lee, Carlos Coqueijo (compositor de É preciso perdoar), a dupla Palmyra e Levita – o único violonista que ouvi João elogiar nos três encontros em que tive a sorte e a honra de ter com ele.

Pouco tempo antes havia se apresentado no Japão. No final de um dos shows, a plateia aplaudiu por 40 minutos. “Sabe o que é ficar agradecendo por 40 minutos, é quase o primeiro tempo de um jogo de futebol”, comparou, emocionado. E o som, que maravilha… e o técnico de som japonês, seu preferido…

Com alguma mágoa disse não ser compreendido quando era exigente com a qualidade do som. Queria o melhor para o público, não somente para ele. O equipamento tinha que captar todo o seu trabalho, as sutilezas, os graves e agudos de sua voz, a clareza de seu violão. Tanta dedicação para ser tudo destruído por cabos e microfones mal equilibrados?

O Brasil nunca entendeu a importância de João Gilberto. E me entristece saber que ele partiu triste, com tantas coisas ruins à sua volta. João era um progressista. Se engana quem acha que era alienado; era muito bem-informado, e tinha um apreço especial pelo povo do Nordeste.

Cantou por horas. A última música que ouvi João cantar foi Hino ao sol, de Tom Jobim e Billy Blanco, depois de uma longa sessão de luta livre na TV, em um final de madrugada:

“Eu quero morrer em um dia de sol
Na plenitude da vida
Tão bela e querida
Que acaba amanhã, amanhã
Quem sabe eu voltarei outra vez
Num raio claro de sol
Num pingo de chuva
Que cai de manhã
No meu Rio”

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