A pergunta da colega de trabalho acicatou-me a buscar na memória qual teria sido o primeiro livro da minha vida. Não soube dizer-lhe qual foi a primeira leitura — provavelmente um gibi que meus irmãos deixaram em algum canto da casa — mas lembrei-me perfeitamente da primeira experiência completa de leitor. Do dia em que escolhi um título na prateleira, paguei o preço ao vendedor, apalpei o volume e cheirei as suas páginas, sentei-me num local apropriado e o li até o final.

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Por sorte, cresci numa casa com muitos livros. Minha mãe era professora, assinava clubes do livro que chegavam pelo correio, tinha o hábito de ler romances todos os dias e mantinha uma biblioteca saudável. E foi ela quem financiou minha preambular aventura leitora, um dos grandes prazeres que ainda cultivo 40 anos depois — ainda que menos do que poderia.

As condições orgânicas foram dadas pela escola católica em que estudava e que costumava levar, na abertura do ano letivo, seus alunos recém letrados em excursão à Feira Intercolegial Estudantil do Livro (FIEL), evento literário que consistia em algumas barraquinhas das principais editoras nacionais instaladas em volta do chafariz das nereidas de bronze que esganam cisnes no meio da praça Osório, em Curitiba.

Como na marcha de Adoniran Barbosa, ninguém ia mais feliz que eu naquele fevereiro, “pois tudo para mim era primeiro”: primeira ida ao centro com amigos, primeiro rolê na Osório, primeira feira de livros. O passeio incluía usar o tobogã no antigo parquinho da praça, que ainda tinha uma fascinante estética steampunk.

A jogada era assim: na aula anterior, nossa professora de português, Stella, como a paixão de Kowalski, dava a cada aluno um papel mimeografado com os títulos que julgava apropriados e seus respectivos preços para que apresentássemos os orçamentos aos nossos mecenas. A mãe leu, riscou o nome dos livros que meus irmãos já tinham comprado em anos anteriores e me deu dinheiro suficiente para um volume  — e um extra para comprar uma paçoquinha.

Entre os que sobraram na lista, havia um título de apelo irresistível: “Dois idiotas sentados cada qual em seu barril…” — assim mesmo, com reticências, e um dos melhores da literatura brasileira desde sempre.

O encontrei na barraca da Editora Nova Fronteira, da qual seria vizinho no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, muitos anos depois. E, se faltava algo para que eu me decidisse, parou de faltar assim que vi a capa.

Aliás, uma mentira que nos contam cedo e que repetimos como sinal de sabedoria, vida afora, é: “nunca julgue um livro pela capa”. Ora, é claro que se deve julgar um livro pela capa — pelo que mais o julgaríamos?

A capa original deste livro, bem como todo o projeto gráfico, era do grande Jaguar.

Foi a primeira vez que li o nome do cartunista, fundador do Pasquim, um dos grandes bebuns da esquerda festiva, muito em breve um dos meus ídolos — o cara que alugou uma farda numa loja de fantasias para jogar ovos na posse de Roberto Campos na Academia Brasileira de Letras.

Hierarquicamente acima, em gloriosa fonte vermelha e três vezes maior, está o nome da autora: Ruth Rocha. A grande escritora nacional de livros para primeiros leitores. A autora do meu primeiro livro nunca esteve para brincadeira.

Escreveu quase 200 títulos, teve livros traduzidos em dezenas de línguas e consta que vendeu mais de 40 milhões de exemplares, com destaque para sua obra de estreia “Marcelo, Martelo, Marmelo”, lançada em 1976.

Inacreditável e felizmente, tanto Ruth quanto Jaguar estão vivos em 2025, sentados cada qual em mais de 90 anos de vida, o que os coloca em um seleto grupo de 0,4% de brasileiros que conseguem chegar a esta faixa etária — apesar de toda a carraspana tomada por Jaguar.

Outro milagre a respeito do tempo é que eu ainda tenho o livro, apesar do meu temperamento desapegado, e depois de tantas mudanças e tragédias em quatro décadas. Uma das poucas coisa que trago da infância, além de meus dentes tortos.

Capa feita por Jaguar para o livro “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril…” Foto: reprodução

Fazendo alguns cálculos e interpretando indícios, concluí que a 5ª edição de “Dois idiotas sentados cada qual em seu barril…” , lançada originalmente em 1983, me chegou às mãos dois anos depois.

1985 não foi um ano ruim. O ano do Rock in Rio e da novela Roque Santeiro. Ano em que invadi o campo para comemorar um título do meu time pela primeira vez. Mas também o ano em que morreu Tancredo Neves.

Ele que havia estado naquela mesma praça Osório, alguns meses antes, naquele que foi um dos primeiros grandes comícios pelas eleições diretas no Brasil.

Lembro do meu pai chegando empolgado em casa deste evento e, toda vez que passo por ali — quase todo dia — cumprimento a estátua do “presidente que nunca foi”, o mineiro que conseguiu, da oposição, liderar um movimento que derrubou um governo autoritário.

“Dois idiotas sentados cada qual em seu barril…” é uma espécie de cordel nonsense, narrado em quadras de rima fácil, mas nem por isso menos brilhantes.

Uma metáfora sarcástica sobre o último momento da Guerra Fria, em que um conflito nuclear parecia provável. Não por acaso, daquele período, sobraram muitos filmes e livros sobre este sentimento paranoico, cujo perfume sente-se novamente no vento.

É a história de dois idiotas: Teimosinho, que usa uma cartola como o Tio Sam, e Mandão, que veste uma ushanka — o boné com uma cobertura nas orelhas, muito usados pelos camponeses russos.

Eles estão sentados em um barril de madeira cheio de pólvora, e cada um segura uma vela acesa. Quando percebem a imprudência e o risco recíproco, um passa a exigir que o outro apague a sua vela.

A princípio, usando a linguagem polida da diplomacia. Mas, como ninguém cede, a conversa vai evoluindo para a altercação. Mágoas e rixas antigas são postas à mesa e um passa a implicar com a cor da roupa ou com o jeito de falar do vizinho. Rapidamente, a coisa escala para uma corrida armamentista.

Cada um dos idiotas pede que os filhos lhes tragam mais e mais foguetes, bombinhas, fogos de artifício — todo um arsenal que sirva para demover o oponente — e assim a tensão aumenta até o desfecho trágico e inevitável, de qualquer guerra.

Como todo livro clássico, o texto segue atualíssimo — com a triste diferença de que, ao contrário do cenário que maestra Ruth criou em 1983, hoje há muito mais de dois idiotas, todos teimosinhos, mandões e gananciosamente psicopatas, sentados em seus barris pelo mundo inteiro.

Ilustração de Jaguar no livro “Dois idiotas sentados cada qual no seu barril…” Foto: reprodução
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bela crônica!

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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