Jards Macalé está resfriado.

Ele mesmo deu a notícia na sala de imprensa montada embaixo do palco da Pedreira Paulo Leminski, minutos antes de apresentar seu show, o terceiro da noite no Festival que, assim como o espaço, também leva o nome do poeta.

Jards Macalé e sua fantástica banda. Foto: Moss Estúdio Criativo

Não é a primeira vez que ele enfrenta esta condição por causa de Leminski em Curitiba. Na entrevista ao Fringe, ele lembrou de uma visita à cidade no ano de 1977, quando se hospedou na famosa casa dos Leminskis no bairro do Pilarzinho e conheceu os rigores da arquitetura “popular pré-modernista” de Curitiba.

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“Foi um frio tão grande quanto o prazer de conhecer o Leminski, uma figura extraordinária, bem-humorada, um piadista fantástico, com grande velocidade de pensamento, que me hospedou por três dias”, disse.

Macalé se referiu ao tempo em que esteve na cidade para os shows de sua histórica turnê com Moreira da Silva, o Kid Morangueira, no inverno de 1977, para apresentações do projeto Pixinguinha no Teatro Paiol.

“Naquele frio daquela casa de madeira, um ventinho que passava pela fresta, e eu peguei um resfriado forte. E fizemos umas duas ou três músicas numa fitinha K7 que desapareceu, ninguém nunca mais viu”, conta.

Jards também falou sobre sua relação poética com Leminski, sobre antigos e novos feitos, e a fase especial da carreira antes de subir para dar seu recado.

Com suas calças brancas, seu casaco e all star vermelhos e seu violão, sentou-se à frente de uma formidável banda formada por cinco instrumentistas mulheres. Juntos, eles passaram por quase todas as ruas da obra de Macalé, em especial pelo repertório de seus últimos dois álbuns (formidáveis, diga-se), Besta Fera e Coração Bifurcado.

Macalé compôs algumas das melhores canções em língua portuguesa. Foto: Moss Estúdio Criativo

No palco, o artista de 82 anos pigarreou, expectorou ao microfone, pediu desculpa por isso, se atrapalhou com o teleprompter, mas entregou o costumeiro “padrão Macalé”: um show antológico com algumas das melhores canções já feitas em língua portuguesa, entre blues abolerados para violão e cuíca e versões desconstruídas de seus clássicos que há muitas décadas orientam o movimento dos barcos da música brasileira.

Macalé é figura rara, irrepetível e quase inacreditável, que só poderia ter nascido no Brasil dos anos 1940, como Leminski e outros tantos desta mesma geração.

Com a diferença de que, enquanto muitos dos contemporâneos que fazem sucesso há décadas andam tirando o time de campo, Macalé, muitas vezes chamado de “maldito”, com baixos e altos profundos numa estrada que vem desde 1965, está em grande fase criativa.

Coração Bifurcado e Besta Fera são dois dos discos mais fodas dos últimos 10 anos, o que torna esta década parecida com a de 1970, quando ele também tomou parte de outros dois álbuns — seu álbum de estreia Jards Macalé e Transa, de Caetano, do qual foi arranjador, dois dos melhores daquela década e de toda a história da música.

“Senhora Estranheza”

Casa cheia; Lenine fechou a noite. Foto: Moss Estúdio Criativo

Em seguida, veio Lenine que, ao contrário de Jards, chegou esbanjando saúde, vestindo jeans e carisma, para um público que saiu de casa, em agradável noite de lua crescente, para vê-lo. E todos viram e cantaram os hits e lados B do pernambucano apoiado por uma banda de primeira.

Antes, em conversa com o Fringe, ele definira a “filosofia lenineana” num sonoro axioma: “eu faço música porque gosto, gosto muito do que faço e só faço o que eu gosto”.

O povo ama Lenine. Foto: Moss Estúdio Criativo

Também disse que sua busca na música é “unir sons, pausa e palavras, arte na qual Leminski é gênio” e que ele e os curitibanos talvez sejam visitados por uma mesma musa.

“Eu acho que o Leminski também dava ouvintes a uma senhora que se chama Estranheza. Ela está aqui no meu pé de ouvido o tempo todo e eu dou ouvido a ela. Tem uma hora que tem que deixá-la de lado, porque senão você se descola de uma realidade. Então eu tenho a impressão de que pessoas como o Leminski também ouviam muito a dona estranheza. E estavam procurando sempre chegar aonde ainda não foram”.

Novas Leminskanções 

Novas Leminskançoes e outras bossas. Foto: Moss Estúdio Criativo

Antes de Lenine e Jards, Leminski “bashô” no palco com o projeto Leminskações, conduzido por sua filha Estrela e por Teo Ruiz. Estrela vestiu o célebre quimono branco e vermelho para liderar uma big banda azeitadíssima com as melhores do repertório de Paulo, com muitas novidades.

Para comprovar uma teoria de Estrela, de que o clássico do leminskiano, tantas vezes atribuído a Caetano, pode ser tocado em qualquer ritmo “regional” brasileiro, Verdura foi transformada em guitarrada amazônica.

Novos arranjos e feats que serão gravados num novo volume de Leminskações também foram apresentados junto com a promessa que haverá material inédito no novo álbum, que vem completar o volume duplo lançado em 2014.

Estrela Leminski provou sua teoria sobre ‘Verdura’. Foto: Moss Estúdio Criativo

Estrela contou que não sabe do paradeiro das fitas de Leminski e Jards, mas tem certeza de que há muita produção do filho de Santa Maria que ainda pode vir à tona.

“Sempre tem coisa. Tanto que eu tava preparando esse disco novo e minha mãe falou: ‘Por que você não gravou aquela que teu pai musicou do Maiakóvski?’ Eu falei, musicou quem? E aí ela cantou pra mim, é uma música maravilhosa. Então, assim, é isso, eu acho realmente que tem uma orquestração invisível. Porque eu, depois dessa que eu soube do Jards, e é o que faz muito sentido: meu pai fez vários poemas pro Jards e era uma pessoa que inspirava ele muito. Faz sentido que eles tivessem feito composições juntos. E eu acho que isso vai aparecer em breve, espero que sim”.

“Não deixe a força da moleza te pegar”

Canções de amor e da mãe-terra. Foto: Moss Estúdio Criativo

No primeiro show da noite, a cantora Rayssa Fayet antecipou o repertório de seu novo álbum, um punhado de canções políticas sobre amor e natureza informadas por princípios filosóficos da ancestralidade indígena e africana.

Lindas e fortes canções, cuidadosamente produzidas ,entre as quais como uma vírgula, um mantra, uma pílula de sabedoria, Rayssa Fayet repetia uma frase que servia de norte ao show: “Não deixa a força da moleza te pegar”. Ao Fringe, ela explicou que é um ditado ouvido de um amigo indígena da etnia Huni Kuim.

“Ele fala para a gente não deixar essa depressão, essas coisas que nos tiram, nos deixam muito para trás, nos pegar. Então, não deixa a força da moleza de não bombear na terra. Então, por isso que é nós, depois de nós é nós de novo. É quando a gente se assenta na gente mesmo, porque a gente nasce e morre sozinho. E vamos navegar, vamos viver e vamos aproveitar a vida, porque é isso que a gente tem agora”.

No palco, Rayssa apresentou seu repertório com um trio composto por ela, a percussionista Matê Magnabosco e a multi-instrumentista Julia Klüber, com a participação das cantoras Janine Mathias e Rubia Divino, cinco mulheres da pesada no palco.

Matê, Rayssa e Julia. Foto: Moss Estúdio Criativo

Na banda Leminskações são duas mulheres e quatro homens. Na de Jards Macalé são mais cinco instrumentistas. Se somar aos cinco homens da banda de Lenine, tivemos mais mulheres que homens tocando num festival de música que, confesso, em muitos anos nessa estrada nunca vi.

Tudo tão bonito que até parecia que íamos todos pegar avião.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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