Minha mãe, que acreditava e sabia das coisas, dizia que, quando entediado, Deus mandava anjos travestidos de moradores de rua para investigar as ovelhas de seu rebanho. Ver se elas tinham entendido alguma coisa.
Caso seja verdade, Deus também sabe das coisas, pois nada define o caráter de uma alma melhor do que a forma com que se trata alguém em situação de vulnerabilidade.
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Sempre me assustou quanto o instinto humano é perverso em momentos de assimetria: ao nos depararmos com alguém mais fodido que nós, o ímpeto geral é punir quem sofre e não o contrário.
Recentemente, aliás, fechou um bar no centro de Curitiba cujo dono era contumaz agressor de moradores de rua.
Mas há exceções, sempre as há, e a mãe era uma delas.
Por isso (mas não só), fez fama na região do Alto da Glória.
O pessoal no que hoje chamamos de “insegurança alimentar” sabia que podia bater palma no portão que não ficaria sem comer.
“Comida é pra dividir e nunca se joga fora”, ela dizia.
18 mil anjos astronautas
Mas se todos os “mendigos” (palavra horrível) fossem mesmo “astronautas”, só no Paraná precisaríamos de uma legião de cerca de 18 mil anjos do Senhor.
Pois este é o número aproximado de pessoas em situação de rua (termo correto) segundo dados da Secretaria de Justiça que podem ser lidos com lupa dupla:
Ao olhar humano, é a falência absoluta da sociabilidade. Uma única pessoa morando na rua – quando há milhares de moradias vazias – é derrota coletiva vergonhosa da qual somos todos culpados.
Do ponto de vista da política de Estado, porém, não é tanta gente assim. Menos do que a capacidade do anel inferior da Arena da Baixada, por exemplo.
Faz-nos pensar que não é impossível saber quem são cada uma destas pessoas e ouvi-las para então entender quais são as razões e demandas de sua condição de momento.
Mas é aí que está o busílis. A construção da política pública para resolver este problema está na arte perdida da escuta, ao passo que elas, em geral, são feitas de cima para baixo.
Todos estão surdos
Ninguém ouve ou presta atenção em ninguém. Quem dirá o Estado nos seus invisíveis.
Ainda que exista pequeno e fervoroso grupo de pessoas que trabalham com paixão, no serviço público ou fora dele, religiosos e laicos, para amenizar a dor dos outros.
Mas como a multidão que habita a paisagem urbana das grandes cidades não choca mais ninguém há muito tempo, nós, escravos das telas e dos algoritmos, zumbis da dopamina, a ignoramos desde que ela não atrapalhe nossas vidinhas.
Mesmo que, muitas vezes, a interação provocada por algum destes habitantes da cidade – como menear a cabeça a quem pede ajuda – é a única interação pessoal que alguém que vive absolutamente conectada experimenta em um dia.
Eu que me orgulho de achar que tenha herdado a práxis da minha mãe, e tento ser solidário o mais possível, admito que é raro acertar a mão quando o caso é compartilhar – seja o espaço ou alguma outra coisa – com os outros.
Escolhas e empurrões
Enfim, é uma questão que nenhum governo ainda soube lidar – de qualquer lado do espectro – e sobre a qual quem mora numa metrópole precisa pensar e agir o tempo todo com desafio aos melhores sentimentos e piores preconceitos.
E que se multiplica por muito quando andamos nas maiores cidades do país.
Em recente viagem ao Rio, me deparei com uma multidão de pessoas nas ruas cariocas. O primeiro erro é pensar que trata-se de uma massa uniforme.
Não sou especialista, mas sei que há uma minoria de pessoas que vive na rua por uma escolha radical de liberdade.
E há uma grande maioria de quem foi empurrado para a rua por uma sequência de rupturas: adoecimento, dependência química, perda de vínculos familiares, desemprego etc.
Assim há de tudo: de poetas a vítimas de abuso. Pessoas com deficiência e profetas como o célebre Gentileza, que hoje dá nome ao terminal do BRT no Rio de Janeiro.
Em Curitiba, há um pintor, um italiano que fez da praças Osório seu ateliê. Homem elegante com alma livre qual um elétron.
Não sei qual é a história que o levou para a rua, mas ela é certamente diferente da que levou o rapaz que vive na marquise em frente ao meu prédio.
Dois Pasteis
Ainda no Rio, depois de um belo dia de trabalho, me aboletei na mesa em estilo tamborete na calçada do famoso Bar do Adão, na rua Gomes Freire, Lapa.
Na via oposta, sentado no meio-fio, um rapaz de uns 20 anos observava, imóvel, minha conversa com o garçom.
Condição que manteve até o exato momento em que meu pedido saiu do balcão.
Hábil, ele coordenou a passada à do garçom e chegou junto com o chope e a dupla de pastéis (e como são bons os pastéis do Bar do Adão).
– Vamos dividir? – ele propôs.
– Claro. Eu pedi para nós. Pegue este aqui, que é de camarão – eu disse, premiando a sagacidade do vivente.
Se dependesse de mim, aliás, todo mundo teria a mesma cota de pastéis, trabalho, dinheiro e terra.
E se, como prometido, a inteligência artificial viesse para fazer o trabalho e nos deixar deixar com uma renda básica e tempo livre, eu topava, mas não vai ser assim: será o contrário.
Amendoim
De volta a Curitiba, em passeio pelo centro, fui abordado muitas vezes até me sentar para tomar um café e ver a corrida de transeuntes na rua XV.
Uma mulher interrompeu minha rolagem de timeline. De cabelos curtos e idade indefinível, ela disse:
– Deixe eu te contar uma coisa…
Com grosseira impaciência, a interrompi:
– Amiga, eu não tenho como te ajudar…
E ela então me ensinou:
– Hei… você precisa aprender a ouvir. Ou então um dia vai precisar que alguém te ouça e não vai conseguir.
Com o rabo entre as pernas, baixei as orelhas. Ela continuou:
– Eu não te pedi nada. E não quero sexo. Já me deram amendoim ali atrás [me mostrou saco com paçocas rolha ] e amendoim é melhor que sexo. Aprenda a ouvir – ela riu e falou. E assim como veio, partiu, não se sabe pra onde.
Só pude concordar.
Com a primeira lição ao menos, pois quanto à segunda, ainda preciso pensar melhor.