Um cadáver insepulto, largado no pátio de um posto de combustível numa estrada do interior pernambucano, é o primeiro “personagem” que aparece em O Agente Secreto, longa-metragem de Kleber Mendonça Filho que foi escolhido como representante brasileiro na disputa pelo Oscar 2026.
O filme está em cartaz no Cine Passeio, em Curitiba, desde a última quinta-feira (18), em mais duas sessões hoje (23) e amanhã (24), com ingressos já esgotados.
O cinema de rua em Curitiba foi um dos escolhidos pela distribuidora Vitrine Filmes para receber sessões de pré-estreia, ao lado do Cinema Fundação Joaquim Nabuco (Recife) e da sala Glauber Rocha (Salvador).
Esta pequena temporada foi necessária para que o filme possa estar apto a concorrer ao Oscar em 2026. O Agente Secreto estreia no grande circuito das salas de cinema do país no dia 6 de novembro.
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O homem da cena de abertura foi morto às vésperas do carnaval e, como dava muito trabalho recolher o defunto em meio à folia, ele ficou à mercê das moscas e cães vira-latas, apodrecendo a céu aberto.

A metáfora informa todo o roteiro de O Agente Secreto, que fala de um outro corpse brasileiro – histórico, político e social. Um de cujus que nem a sociedade nem o Estado nos dispusemos a enterrar. Alheios ao mau cheiro, seguimos convivendo com as sequelas de sua presença, na base do “deixa como está que depois a gente vê como é que fica”.
A forma de manifestação deste cadáver, que é a ditadura civil-militar à brasileira, que durou de 1964 a 1985, é a memória – palavra certaeira se quiséssemos definir o tema do filme em apenas uma.
O roteiro faz várias reflexões sobre ela: desde a maneira como pesquisadoras no tempo contemporâneo investigam os fatos da trama principal, em conversas entre amigos refugiados ou entre pai e filho sobre perda e saudade. Ou na fotografia do que sobrou da paisagem urbana do Recife de 50 anos atrás.
Tudo é memória e o que fazer com ela.
Raízes

Como o filme não está em cartaz para o público em geral, optei por fazer um texto sem spoilers da trama – há muitos por aí para quem quiser ler –, mas posso dizer que o filme é sobre como lidamos com nossa história coletiva e suas causas e consequências e como a forma como escolhemos fazer pode definir o que vai acontecer em nosso futuro.
Neste ponto, o debate que O Agente Secreto traz e trará não poderia ser mais atual.
No filme, há agentes públicos corruptos a serviço de interesses de países e mercados estrangeiros, há policiais e ex-militares ainda mais corruptos e psicopatas que se organizam em esquadrões da morte, todos usando a máquina estatal para se locupletar, mas, cinicamente, acusando pesquisadores e acadêmicos do crime que cometem.
Como em seus outros filmes, Kleber vai fundo nas ciências sociais para analisar as relações e busca olhar o tabuleiro inteiro – da política internacional ao ethos do povo de um lugar –, desta matéria de memória. A proverbial cordialidade brasileira, das Raízes do Brasil, explica muito da licenciosidade das relações do Estado e sociedade e suas circunstâncias pontiagudas.

O filme tem grandes momentos como filme de ação. Grandes personagens secundários, como nos outros filmes do cineasta. Trilha, direção de arte e atuações formidáveis. Destaque para o elenco sênior e, nele, para a estrela da película, a atriz Tânia Maria, que vive a senhoria de um dos personagens vividos por Wagner Moura.
Tubarões

Ainda espero falar muito sobre o filme em sua longa carreira até uma possível indicação ao Oscar, passando pela estreia nos cinemas, que certamente inflará debates interessantes. Mas, por ora, acho que vale falar sobre a presença do filme Tubarão, o primeiro grande blockbuster, na trama de O Agente Secreto.
O filme de Steven Spielberg, que está completando 50 anos – mas que fez furor nas salas de cinema brasileiras dois anos depois, na mesma época em que se passa a maior parte da ação de O Agente Secreto – é uma da chaves para entender o filme de Kleber Mendonça Filho.
O clima de paranoia permanente pela presença do tubarão na praia e as náuseas que a projeção causava nas pessoas eram o prato do dia na vida de quem se opunha ao regime militar. Em outra mão, as pessoas filas que se formaram para ver Tubarão não imaginavam que este seria o filme que iniciaria uma mudança no processo de criação e distribuição de filmes, que no fim sufocaria muitas das indústrias não americanas do cinema e, no limite, acabariam com aquelas salas de rua que o consagraram.
Em Recife, quem frequenta as praias sabe que tem que ficar esperto com ataques de tubarões. Atento e forte, pois a dentição do bicho se renova todos os anos. Não esquecer de onde partem essa e outras ameaças violentas é o que O Agente Secreto tem para contar para o mundo, a partir da memória de um tempo brasileiro.
Além, claro, de que devemos enterrar nossos mortos mesmo que seja Carnaval.