Por Antonio Carlos Quinto do Jornal da USP
No final do século 19, um grupo de operários, todos músicos amadores, fundou uma corporação musical que sobrevive até os dias atuais numa cidade como São Paulo, inquieta e em constantes transformações. De acordo com a pesquisadora Paula de Mattos Skromov, a Corporação Musical Banda da Lapa foi fundada por volta de 1881. Ela estudou parte da trajetória da banda em sua dissertação de mestrado Paisagens Sonoras da Banda da Lapa: Tradição e Memória Operárias na Cidade de São Paulo de 1914 a 1930 e de 2003 a 2019, apresentada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Localizada no bairro da Lapa, na zona oeste de São Paulo, a banda teve outros nomes. “Chegou a ser chamada Lira da Lapa, depois foi renomeada como Banda 15 de Novembro, em homenagem ao primeiro aniversário da Proclamação da República, no ano de 1890”, como conta Paula de Mattos ao Jornal da USP. E lá por volta de 1908, um novo nome: Banda dos Empregados da São Paulo Railway. “Esse nome veio após a transferência das oficinas da São Paulo Railway, do bairro do Bom Retiro para a Lapa, em função da abundância de água na várzea lapeana”, conta a pesquisadora.
Até 1914, a corporação permaneceu como a Banda dos Empregados da São Paulo Railway, quando em uma assembleia os músicos deliberaram o nome definitivo: Corporação Musical Operária da Lapa.
“Consultei jornais e outras publicações antigas do bairro e encontrei escritos de um cronista chamado Miguel de Lerba. De acordo com ele, o nome ligado à São Paulo Railway foi uma tentativa de angariar algum auxílio da empresa. O que não deu resultado”, conta a pesquisadora.
Paula detalha que o historiador José Roberto dos Santos, que é mestre e doutor pelo Departamento de História da FFLCH, encontrou registros de 89 bandas na cidade de São Paulo, entre 1888 e 1932, que foi o período da primeira república. “Eram bandas militares, bandas populares civis, amadoras ou profissionais.” Outro fator importante salientado pela pesquisadora é que nos anos 1920, antes da “era do rádio”, “quem fazia a difusão de repertório e a formação, portanto, da escuta do público, eram as bandas”. São Paulo tinha vários coretos, e as bandas tocavam em todas as partes: desde efemérides até inaugurações de lojas e obras concluídas.
Paula lembra que há na cidade outra banda tão antiga quanto a corporação da Lapa, que é a Banda da Força Pública, e que ainda está em atividade. “A Banda da Lapa se apoiou na tradição do calendário festivo católico. Aliás, a maioria delas assim procedeu”, aponta. “Essas bandas conduziam, e ainda ainda conduzem, procissões, tocam em festas de padroeiras e em outras datas importantes para o catolicismo, como festas do Divino, festas de São João, de Santo Antônio e por aí vai.”
Atualmente, a corporação musical tem cerca de 20 integrantes. Mas esse número varia, já que o critério para participação é a adesão voluntária, segundo a autora do estudo. “A maioria dos músicos é formada por trabalhadores. As mulheres passaram a integrar o corpo musical a partir dos anos 1990”, lembra Paula, salientando que o grupo é mantido e autogerido pelos seus integrantes desde os seus primórdios.
“A banda se mantém, em parte, com a renda obtida dos cachês das apresentações. Mas são cachês muito modestos. Por conta disso, a corporação é bancada, em grande parte, pelos próprios integrantes”, destaca. “Os componentes assumem as despesas com a sede própria, com cópias de partituras e com deslocamentos da banda pela cidade para as apresentações. Há também a manutenção com os instrumentos musicais”, lembra Paula.
Tradição e modernidade: Sr. Arnaldo Moura e sua tuba, em dezembro de 2019, e a banda observada por uma criança durante apresentação – Imagem: Fotomontagem com fotos de Fernando Fernandes/Acervo CMOL
Presença carnavalesca
A Corporação Musical Banda da Lapa sempre teve importante participação no carnaval. Afinal, era a principal atração do cordão carnavalesco Lapeano, que agitava o bairro nos anos 1920, 1930 e 1940. E como lembra Paula, a banda era presença efetiva também nos bailes. “Ela, inclusive, guiava o corso do cordão. O cordão carnavalesco lapeano era significativo e só perdia, em público, para o corso da Paulista e pro Carnaval do Brás”, salienta a pesquisadora.
Atualmente, a Corporação Musical Banda da Lapa é a principal atração do Bloco do Jamelão, que desfila pelas ruas do Bexiga, na área central da cidade, sempre depois do carnaval. “E isso já há uns 10 anos”, calcula Paula.
A pesquisadora justifica sua análise em recortes de tempo – 1914 a 1930 e 2003 a 2019. Ela conta que referente aos anos de 1914 a 1930, conseguiu encontrar documentos, registros, escritos, anúncios, crônicas e reportagens. “Também encontrei fotografias que registram todo o empenho daquela geração dos músicos da banda em construir um legado”, diz.
Como salienta Paula, além da função da banda como difusora de repertório musical, ela também tem uma função ainda hoje presente em muitas cidades do interior do Brasil, de ser um conservatório popular de educação e iniciação musical. “Mais do que isso! E, no caso daquele operariado na Lapa, que até 1930 era um local distante da cidade e das benesses da modernidade da época.”
“Existiam fábricas e cortiços. E mesmo assim os operários conseguiram criar suas opções de lazer e cultura”, destaca. “Eles acabaram criando uma tradição própria que combinou tradições de liras de coretos interioranas com bandas europeias, sobretudo italianas.”
Paula descreve que a presença musical dos italianos é muito forte na banda, o que pode ser visto no repertório que apresenta desde releituras de óperas e árias até maxixes e polkas.
Paula conta que a geração atual, relativa ao período de 2003 a 2019, também está bem documentada, atuante e viva. “Eu quis encontrar os pontos de continuidade e os pontos de diferença entre ambas as gerações separadas por um século”, justifica a pesquisadora.
A história da Corporação Musical Operária da Lapa pode ser consultada em um artigo disponível na Wikipédia.
