Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
Talvez a grande vergonha literária dos meus 20 anos de vida seja o fato de nunca ter lido Grande Sertão: Veredas. Sim, eu sei, é um dos livros mais representativos da história do Brasil; lê-lo é, de certa forma, entender o próprio país. Mas eu nunca me senti pronto para encará-lo. Todo o culto à sua volta me fez pensar que eu só o enfrentaria em outro momento da minha vida. Tudo o que ouvi sobre as “dificuldades” do texto me fizeram duvidar da minha capacidade de leitor. Mas, na última quarta-feira, comecei a mudar essa história.
+ Leia Também + O cinema precisa voltar a sonhar com seus cartazes
O Cine Passeio recebeu o lançamento de O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, em uma sessão especial seguida de debate sobre o filme. O longa, inspirado na obra de Guimarães Rosa, é uma espécie de adaptação da peça homônima apresentada no Festival de Curitiba em 2018 — e é diferente de tudo o que já vi na vida.
Os primeiros minutos são esquisitos, não posso negar. Tive dificuldade em entender o que estava acontecendo, quem eram os personagens e para onde aquela história me levaria. Em um mundo viciado em dopamina, O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho se destaca por ir na contramão: é uma obra sem estímulos visuais ou cores vibrantes, em que o foco está completamente no texto e na atuação. O fundo do filme é inteiramente preto.
Cheguei até a questionar o valor da obra enquanto produção cinematográfica — afinal, o que eu via na tela parecia mais uma (excelente) peça de teatro filmada. Mas, passado o estranhamento inicial, comecei a enxergar até onde a diretora Bia Lessa queria me conduzir.
O filme é, acima de tudo, uma viagem aos jardim das sensações. A sonoridade criada por Bia é intrigantes e feita com um capricho e um cuidado admiráveis. Ao mesmo tempo em que se trata de uma produção altamente profissional, há nela algo de íntimo, quase caseiro, como se tivesse sido feita especialmente para cada um de nós.
Em certos momentos, a entrega dos atores se torna algo sobrenatural, como se os personagens de Guimarães Rosa realmente ganhassem vida diante de nós. Conheci Riobaldo, Joca Ramiro e Diadorim nesta quarta-feira, mas sinto que mantemos uma relação íntima de uma vida inteira.
O jogo de luzes do filme valoriza com precisão o texto e as atuações. Cada zoom, cada plano e cada movimento de câmera parecem meticulosamente pensados. O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho é cinema, mas também é uma apresentação teatral — coreografada à exaustão e reproduzida com perfeição na telona.
O debate após a sessão contou com a presença de Lígia Negri, que interpreta Diadorim, além de Maria Isabel Bordini, Guilherme Gontijo Flores e Luiza Lemmertz. Ouvir pessoas desse nível falando sobre o filme que você acabou de assistir é uma daquelas experiências que todo cinéfilo sonha em viver.
Logo no início da conversa, Lígia explicou a estratégia por trás do lançamento do filme:
“A gente foi fazendo esse lançamento cidade a cidade, quase como uma ocupação — por isso o nome Mãos à Obra, que é o nome do projeto. Fomos promovendo debates, dando oficinas e exibindo outros filmes que também dialogam com o universo de Guimarães Rosa. Infelizmente, esses filmes não vieram para Curitiba por uma questão de tempo, mas as ocupações serviram justamente para isso: promover discussões e conversar com as pessoas.”
O elenco do filme é o mesmo da peça, o que explica o altíssimo nível de conexão dos atores com o texto — e também a linguagem teatral presente na obra. Por vezes, senti que estava no Guairão assistindo a um espetáculo, e não em uma sala de cinema.
“Somos pessoas do teatro, a gente gosta de estar junto, presente, ao vivo, com as pessoas, poder trocar, poder conversar”, afirma Lígia.
Os convidados trouxeram reflexões pertinentes a respeito do filme e da obra de Guimarães Rosa. Gontijo, que é doutor em letras pela USP e professor da UFPR, chegou a comparar o filme com as pinturas de Caravaggio.
“Talvez o mais interessante de destacar seja justamente essa ideia dos mitos das obras inadaptáveis. No meu mundo da tradução, tem obras consideradas intraduzíveis, o que a gente percebe é que a transparência — ou a tentativa de copiar fielmente — é exatamente o que menos interessa. O que importa é o que se transforma, o que vira outra coisa.
Aqui, por exemplo, o teatro vira cinema; o que era Rosa, às vezes, se torna Caravaggio, se torna cultura. O descobrimento de Diadorim como um corpo nu feminino é também um ato de reinvenção. Estamos, claramente, encontrando outros modos de ver Rosa — e é justamente isso que define uma adaptação, uma tradução ou, como está no verbo do filme, algo ‘calcado em Rosa’. Um gesto forte, que ousa dar vida e singularidade a algo já marcante por natureza.”
Continuo sem nunca ter lido Grande Sertão: Veredas, mas o filme de Bia Lessa me atingiu exatamente no ponto em que eu mais temia. A obra pode ser difícil, mas se eu continuar esperando alcançar um certo grau de maturidade para lê-la, talvez nunca o faça. Por que adiar uma das experiências literárias mais intensas que um brasileiro pode ter? No fim das contas, o que é difícil quase sempre é também o mais recompensador.

