Adoro listas. E, sempre que surge alguma com os melhores filmes da cinematografia nacional, eu corro para ver em que posição está o pequeno grande filme Festa, de Ugo Giorgetti, para perceber, frustrado, como ele nunca é lembrado.

O filme foi saudado pela crítica em 1989, ano em que o cinema brasileiro ainda não sabia que estava entrando na UTI e que os aparelhos seriam desligados logo depois.

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Antes de assistir ao filme em casa, em VHS, tinha lido as críticas nos jornais e revistas que assinava e comprava regularmente para me informar sobre o maravilhoso mundo do cinema — no auge da era das locadoras.

Lembro do grande Rubens Ewald Filho destacando as sutilezas do roteiro e a referência ao teatro do absurdo e, em especial, a Esperando Godot, de Samuel Beckett.

Na revista Set, José Geraldo Couto apontava o filme como uma alternativa à crise que batia às portas do cinema brasileiro: “um filme autoral, barato, inteligente, bem realizado e comunicativo”.

O grande Sérgio Augusto, no Jornal da Tarde, comparou o trabalho de Giorgetti com o de Robert Altman e Jim Jarmusch, que eram os autores mais descolados de Hollywood antes da era Tarantino, e anunciou a criação de uma pequena obra-prima.

Foi a mesma impressão que tive. Festa me falou tanto à alma que vou confessar um crime (já prescrito, felizmente): eu pirateei uma cópia e assisti muitas dezenas de vezes e fiz muita gente assisti-lo.

Hoje o filme está inteiro no YouTube:

Hoje sei que Festa se enquadra numa tradição do novíssimo cinema paulista — ou néon-realismo — de tonalidade pós-moderna, que surgiu nos anos 1980 em São Paulo, contrapondo-se frontalmente à herança cinemanovista dos autores cariocas e nordestinos radicados no Rio.

Giorgetti tinha uma larga experiência em publicidade e misturou esse realismo, quase um teatro filmado, com técnicas guerrilheiras de filmagem adaptadas da Boca do Lixo e da propaganda. Fez um filme com o gosto das comédias italianas da época: uma porrada sutil, amarga e divertidíssima.

Toda a ação acontece durante uma única noite.

Há uma grande festa de granfinos numa mansão, e são convidados um músico, um tocador de harmônica (Jorge Mautner), um jogador de sinuca old school, saído das páginas da literatura de João Antônio (Adriano Stuart), e seu velho assistente de malandragem, em antológica atuação de Antônio Abujamra.

Eles foram convidados e seriam pagos como possíveis atrações da festa, mas o tempo vai passando e eles nunca são chamados. Ficam nos bastidores, onde também convivem os empregados da casa e a caótica equipe de garçons, liderada por um maître sádico e mal-humorado vivido por Otávio Augusto. De vez em quando, a festa escapa e invade o espaço da ralé — e vice-versa.

A metáfora social é clara: enquanto acontece uma festa de gente rica e poderosa no andar de cima, os serviçais ficam no de baixo, tentando saber o que se passa e esperando ser chamados.

A situação serve bem para representar a sociedade brasileira e funciona como moldura para um estudo dramatúrgico sobre os modos de relação entre os personagens.

O reconhecimento de Festa foi imediato. No Festival de Gramado, no Rio-Cine e no Troféu APCA da Associação Paulista de Críticos de Arte o filme ganhou dezenas de prêmios, todos merecidos.

Roteiro, direção, construção de personagens, diálogos — lembro de vários — e atores geniais, entre os quais José Lewgoy e Ney Latorraca, absolutamente impagáveis, fazem de Festa o melhor filme brasileiro da sofrida década de 1980 — uma pequena e esquecida obra-prima do cinema nacional.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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