Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
O final de 2025 marca a metade desta década marcada por profundas transformações sociais, tecnológicas e outras que ainda somos incapazes de explicar, causadas pela pandemia de Covid-19 e o começo da era da I.A.
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A melhor crônica brasileira deste tempo complexo, ambíguo, incerto e volátil foi feita pelos artistas do rap nacional.
Confira aqui os 5 melhores e mais importantes álbuns de rap lançados até agora nesta década, segundo o repórter que vos escreve.
Roteiro Pra Aïnouz (Vol. 2) – Don L (2021)
Quando o fortalezense Don L lançou Roteiro Pra Aïnouz (Vol. 2), em 2017, o álbum marcou uma importante mudança de chave em sua carreira. O que antes eram temas que ficavam em segundo plano em suas músicas se tornaram o grande motor de sua carreira e identidade enquanto artista. Questões políticas, sociais e econômicas permearam todas as produções e letras do projeto, que o alçou a um patamar de respeito e importância atingido apenas por um pequeno grupo no rap nacional.
Quatro anos depois, em 2021, Don lançou a continuação do projeto, o volume 2 da trilogia, que é contada de trás para frente — e ainda não chegou ao fim. Para entender o álbum, é importante olhar para o nome: Aïnouz. O diretor, também de Fortaleza, tem a carreira marcada por filmes que mostram a constante contradição e o preconceito da sociedade brasileira, como o clássico Céu de Suely, um drama sobre a condição das pessoas trans no país.
Roteiro Pra Aïnouz é, desta maneira, um roteiro para a revolução. Um roteiro para se desprender daquilo que ainda atrasa o Brasil. Nesse sentido, é importante lembrar que Don L é comunista assumido e fala constantemente do assunto em entrevistas. O volume 2 da saga é o ápice e a materialização da revolução pensada pelo rapper.
O álbum inicia com Vila Rica, um ataque às elites e à história de exploração das camadas populares, que se confunde com a do Brasil. Liricamente, é a mais potente de todo o projeto. Após a “sustentação teórica” da revolução, inicia-se o planejamento dela, com A Todo Vapor, Pânico de Nada e Enquanto Recomeça, canções que narram a violência da população finalmente se rebelando nas ruas.
AK do Guevara ao meu alcance,
A dela é Sankara e nosso lance,
É África, América livre,
Amor e luta,
Queen & Slim em Cuba,
Assata Shakur em New Jersey,
Túpac Amaru II e Micaela,
Se a gente morrer, valeu a guerra
Após a rebelião nas ruas, o povo vence. Em Primavera, Don L narra de maneira emocionante como seria uma vitória da revolução popular brasileira. Com refrão potente de Rael, é provavelmente a grande música brasileira de toda a década, seja por sua importância, seja por sua qualidade musical. O auge da música se dá por uma paráfrase de Carlos Marighella: “A única luta que se perde é a que se abandona. E nós nunca, nunca abandonamos a luta”.
Após a vitória da revolução, o restante do álbum se debruça sobre o dia seguinte. O geralmente esquecido dia seguinte. O que fazer após finalmente vencer? Para Don L, é importante festejar, como mostra a música Favela Venceu.
O álbum se encerra com Trilha Para Uma Nova Trilha, uma reflexão sobre toda a aventura vivida no projeto:
“Sangue pelo lítio do meu Samsung,
Guerra por cobalto no meu Apple,
Lendo sobre Il Sung,
Cinco propagandas sobre um paraíso em Cancun,
Sério…
Se for pra nós viver por isso,
Eu prefiro morrer pelo que eu acredito,
A trilha para uma nova”
O Líder em Movimento – BK (2020)
O álbum mais político de BK não poderia ficar de fora da lista. Em O Líder em Movimento, acompanhamos a persona de um ativista inspirado em figuras como Malcolm X e Martin Luther King, algo que o rapper já sustenta na abertura do projeto: “E a luta pela liberdade só acaba quando ela for encontrada, para que a nossa poesia não seja mais escrita com sangue. Eles mataram Pac, mataram Big. Eles querem matar um mano que resiste”.
Ao longo do projeto, acompanhamos a visão de BK — ou do líder — sobre diversos assuntos do mundo, como amor, família, poder, lugar e o universo, temas que dão nome às músicas do álbum.
O destaque fica por conta de Pessoas, com um sample poderoso de Minha Gente, de Erasmo Carlos. A produção de todo o álbum é assinada por JXNV$, o Jonas, parceiro artístico de longa data do rapper carioca, e é marcada por beats sujos, “grandes” e cheios de sintetizadores.
A música de encerramento de O Líder em Movimento, Universo, é considerada por muitas fãs de BK como a melhor música de toda a sua carreira — e não é à toa. Soando quase como uma canção de ninar, é relaxante, inspiradora, mas extremamente afiada em sua letra: “Até quando eu falo merda, isso é uma parte de quem eu sou. Não vou me fingir de bonzinho e depois te roubar, não sou pastor”.
Esculpido a Machado – Leall (2021)
Esculpido a Machado é um verdadeiro magnum opus do rap nacional, seja na opinião dos fãs, seja na opinião da crítica. Logo na abertura do álbum, somos apresentados à história que Leall nos conta ao longo do projeto: “A história que você vai ouvir agora é uma história que acontece com pelo menos 2 em cada 10 jovens do meu bairro, que na barriga da miséria nasceram brasileiros”.
Com uma das capas mais icônicas da música brasileira recente, a arma que Leall aponta para nós nela é um prelúdio do que esperar do álbum — um tiro, um soco na cara, uma realização.
Pedro Bala, segunda música do álbum, faz referência ao icônico personagem de Capitães da Areia, romance clássico de Jorge Amado, exemplo do que a sociedade brasileira faz tantas vezes com a juventude:
“Eu serei tão cruel quanto o mundo lá fora, Os capitães da areia levam suas joias, Entre a morte, a miséria e a marra, Eu quero arma, O sonho dela é ser mulher de Pedro Bala, O sonho dele é matar o Pedro Bala, Entre becos e vielas, Pedro Bala”.
Leall transparece de maneira genial como é crescer em um ambiente violento que só inspira mais violência. As produções são sujas, pesadas, e as letras sinceras e diretas, sem qualquer tipo de papa na língua. O talento do rapper para contar histórias, mesmo quando trágicas — como a descrita na ótima Encomenda, que relata um sequestro —, é algo realmente admirável.
O clima do álbum começa a mudar em Pedras Amarelas, uma música lenta e triste, que joga em nossa cara o verdadeiro genocídio que jovens negros sofrem em todo o país.
“Mas tu sabe quem fornece o genocídio na favela?
É a injustiça empurrada pela goela,
Eu vi um Brasil atropelado igual sucata,
Na bandeira dois, ele se droga e cata lata,
E a solidão vira cachimbo pra miséria,
Mas no Jacaré é onde a tristeza supera,
Na linha de trem a merda fica escrachada,
Corpo encardido feito sangue de barata,
Sua boca branca e o sangue escorre pela perna,
Pedras Amarelas”.
A melhor música do álbum é a homônima Esculpido a Machado, com um beat hipnotizante e letras de denúncia, de tom pesadíssimo.
“Jovens negros se sentem na Candelária,
Jovens brancos têm surtos psicóticos,
Vontade de ser favela, eu matarei seu racismo velado”.
O álbum se encerra com músicas reflexivas, Pela Minha Área e Posso Mudar Meu Destino, nas quais Leall tenta romper com o ciclo de violência em que tantos jovens estão inseridos no Brasil.
“Essa é pra você,
Eu sou menos um na estatística,
Menos um na estatística homicida do Estado,
Menos um negro que não passou dos 18 anos”.
KTT ZOO – Sain (2023)
Com uma das capas mais interessantes já produzidas pelo rap nacional, KTT ZOO é uma ode ao bom boom bap, com o pacote completo do que se espera a partir disso — beats bons e tranquilos, entrega do artista e letras afiadas.
Sain, além de ser filho de Marcelo D2, se destaca na cena pela maneira única com que rima, além dos assuntos sempre interessantes que traz em suas músicas.
KTT ZOO, apesar de menos político que os outros álbuns da lista, é um dos que têm maior valor de replay, isto é, aquele que podemos ouvir sem enjoar, o tempo inteiro. A produção dos beats e a mixagem das músicas são de nível altíssimo, com destaque especial para Iori Incorporado, criativa e viciante ao extremo.
“Que meus advogados não falhem,
Que meus pecados sejam perdoados,
Daqui de cima eu tô atrás de resultado”.
Mesmo com apenas dois anos após seu lançamento, não é errado dizer que KTT ZOO já é um clássico da música carioca contemporânea. A maneira como Sain exprime a identidade da cidade em suas músicas separa este álbum de outros tantos do mesmo estilo lançados recentemente.
BRIME! (Deluxe) – Febem (2023)
Grime é um gênero musical urbano que surgiu em Londres, no início dos anos 2000, marcado por uma mistura de UK garage, hip-hop, ragga e jungle, e conhecido por suas batidas eletrônicas rápidas (cerca de 140 BPM), linhas de baixo pesadas e MCs com versos curtos e complexos, refletindo a realidade social com letras diretas e energéticas.
O álbum BRIME!, de Febem, é nada mais nada menos que a versão brasileira definitiva do gênero — como seu título sugere. Com referências ao mundo urbano paulistano, ao Corinthians e críticas sociais sem qualquer pudor, é o álbum mais divertido e único da lista.
A alternância entre músicas que poderiam ser ouvidas em uma balada e faixas pesadas e sujas faz do projeto algo que pode ser apreciado a qualquer momento, em qualquer lugar.
Mais do que um álbum, BRIME! se tornou uma estética, tanto musical quanto de estilo, um feito raro na música em qualquer parte do mundo.
Musicalmente, o destaque fica por conta de FALA MEMO, com participação de CORUJA BC1, que entrega um dos melhores versos de todo o álbum. HOJE, uma das cinco músicas adicionadas ao deluxe do projeto — que era inicialmente um EP —, encapsula tudo aquilo que o BRIME! se propõe a ser.
“O bolso tá o bicho, invejoso não entende,
É peixe, onça, peixe, onça, peixe,
Brasil, futebol, fuzil, telha Brasilit”.

