Agosto é um mês sempre peculiar em Curitiba. Além do proverbial frio, costuma abrigar o aniversário do nosso “cachorro-louco”, o poeta Paulo Leminski (1944-1989), aquele que é capaz de fazer chover em qualquer piquenique.

Há tempos que o celebramos nesta época, mas neste ano, especialmente, em que Leminski completaria 80 invernos, teremos, entre muitos outros perhapiness, um festival na Pedreira que leva seu nome.

Um evento criado para honrar a contribuição do poeta como compositor de música popular – e que terá cobertura especial deste FRINGE. Sozinho ou com parceiros, Leminski criou um belo livro de canções em sua curta e muito produtiva vida.

Foto: reprodução.

Gosto particularmente de uma, cujo nascimento rendeu uma das melhores histórias sobre a arte de fazer músicas. Quem nos contou foi sua então companheira, a poeta Alice Ruiz, em depoimento ao Song Book Paulo Leminski lançado em projeto patrocinado pela Petrobras em 2015.

Numa madrugada em 1981, ela, Paulo e as duas filhas deles, Aurea e Estrela, viajavam de ônibus para o Rio de Janeiro. A certa altura, enquanto a BR-116 se acelerava sob o ônibus, Paulo acendeu a luzinha sobre sua poltrona, pois outra luz o havia percorrido.

Como ensinou João Nogueira (1941-2000), não precisa se estar nem feliz nem aflito, nem se refugiar em lugar mais bonito, pois a música chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente e acende a mente e o coração.

Dessa vez, era a letra de “Promessas Demais”, que Paulo, espremido no assento, psicografou de um golpe numa folha de papel. Alice conta que, quando a família chegou ao Rio, foram direto para a casa de Moraes Moreira, onde costumavam se hospedar.

Caetano Veloso, Paulo Leminski e Moraes Moreira: amigos e parceiros nos anos 1980. Foto: Acervo família Leminski.

Moraes foi o mais prolífico parceiro de Leminski. Mas dessa vez não os estava esperando, pois tinha ido dormir tarde na véspera. Marília, esposa do músico baiano, disse que ele tinha ficado trabalhando num tema instrumental com Zeca Barreto, outro de seus históricos parceiros.

Quando Moraes acordou, ele e Leminski descobriram que que naquela madrugada sonharam a mesma música ao mesmo tempo . “Foi uma coisa de quase chorar”, conta Alice. “Paulo mostrou a letra para Moraes, que falou: ‘Mas escuta isso que fiz essa madrugada.’ Começou a tocar e a letra se encaixou à perfeição”.

As duas se casavam como se tivessem sido feitas em presença. “Eles praticamente não mexeram em nada, nem na música, nem na letra”, disse a poeta. “O máximo de parceria que tenho notícia é essa quase uma telepatia, uma canção nasceu, com a letra indo em direção à música, ao mesmo tempo.”

A arte da composição

Eis o milagre da composição. Uma palavra com amplos sentidos, mas que segundo o dicionário das artes de Newton Cunha, é o engenho de selecionar, conjugar ou dispor elementos primários em uma certa ordem particular relativamente às suas quantidades, proporções e significados, a fim de ter, como resultado, uma peça completa.

No caso, uma obra única em forma de canção popular. Veja Moraes Moreira tocando uma versão acústica de “Promessas Demais”:

Em gramática, porém, composição é a junção de dois vocábulos anteriores em uma outra unidade de significado próprio por justaposição e aglutinação. Foi o que fizeram Paulo e Moraes: aglutinaram e justapuseram a letra e a música que cada um fizera em seu próprio transe.

“Promessas Demais” é uma das minhas três favoritas do Leminski compositor. Ela não foi gravada por Moraes, pois entrou no repertório do disco que estava sendo preparado pelo maior astro do pop nacional daquela e de todas as épocas, Ney Matogrosso.

Foto: reprodução

O disco é aquele de 1982, chamado “Matogrosso”, em que Ney aparece com uma sunguinha, quase um tapa-sexo, boiando nas águas de algum rio do Pantanal, em arte de capa por Luiz Fernando Borges da Fonseca que quase foi censurada.

O álbum fez um grande sucesso com faixas como “Debaixo dos Panos”, que teve clipe no Fantástico e sátira dos Trapalhões. Produzido por Mazzola, a interpretação de “Promessas Demais” tem um arranjo sofisticado que é a cara daquele tempo: um solo de saxofone com um timbre que só foi possível em 1982.

Tudo ficou tão bonito que faixa foi a escolhida para ser o tema de abertura da novela “Paraíso”, de Benedito Ruy Barbosa, que foi uma das primeiras a explorar a temática jovem dos anos 1980, com Kadu Moliterno, que anos depois seria o astro de “Armação Ilimitada”.

A música que Leminski e Moraes sonharam juntos era a que o Brasil queria ouvir.

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Sandro Moser é jornalista e escritor.

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