Falar no ambiente seguro das bolhas virtuais já não basta. É preciso disputar os valores, ali e em outros locais. Nos lugares do encontro presencial também. O teatro é um desses lugares. Um lugar privilegiado para o exercício da politização. Não só por reunir fisicamente os que vivem a cidade e seus conflitos como também porque é uma arte que pode colocar o conflito em debate com mecanismos capazes de presentificar o dissenso.
Em um momento de pressão intensa sobre um governo progressista eleito pelo povo, mas sob um racha ideológico que segue reafirmando a fratura dos anos recentes, é fundamental que a sociedade civil promova os espaços dialógicos. Não para colocar panos quentes sobre os enfrentamentos, como tem sido em nossa cultura política ainda marcada pela perversão da cordialidade, mas para que o aprendizado do que chamamos democracia seja um hábito ordinário como ir comprar pão.
E por falar em hábitos ordinários, se procurarmos o ponto de chegada do teatro de Brecht (1898-1956) veremos que as cenas e poemas encenados pelo Teatro Promíscuo em O que nos mantém vivos não são um fim estético em si mesmo. E, apesar disso, Brecht nos oferece um dos projetos estéticos mais ambiciosos do teatro moderno. O sistema brechtiano alcança todos os dispositivos mais importantes da cena: a dramaturgia, tornada épica, os métodos para uma interpretação dialética, as formas de uso da luz e da música e os modos de relação entre palco e plateia. Por mais inventivo que seja, o teatro brechtiano não é apenas formalismo, ao menos não na origem. São instrumentos de um projeto cujo ponto de chegada é o desejo de uma pedagogia própria que consiga desideologizar a vida comum, o entendimento das relações sociais. Isso só será possível, ele nos mostra, se o público for posto a pensar que os lugares e hierarquias de classe não são naturais. Ao contrário, são mudáveis. Mas a ambição, como nos mostra o trabalho do grupo de Renato Borghi, não é a mudança pontual e sim a transformação estrutural dessas relações. Não se trata apenas de uma “estética com finalidade política”, no sentido de uma arte de temática engajada. Trata-se do fato de que a estética é a própria política. Ou, em outros termos, uma cena em que o gesto artístico coincide com o gesto crítico.
A essa altura o leitor estará perguntando o que a memória do teatro brechtiano tem a ver com a montagem apresentada no Festival de Curitiba pelo Teatro Promíscuo. Tudo, à medida que a intenção do grupo não é só atualizar o sentido das histórias escritas pelo autor alemão. Isto também está lá, a liga com a conjuntura brasileira e o debate em torno de temas já bem postos em um contexto de posições suficientemente afirmadas. Mas, além de, como diriam os velhos militantes, marcar posição, salvo engano a parte mais interessante agora é verificar de que maneira isso acontece no calor da hora, neste festival da cidade de Curitiba, diante de uma plateia que não é qualquer plateia, é a plateia deste lugar, cuja sociabilidade tem seus valores.
Para começar cravando um veredito suspeito, podemos dizer que o espetáculo quase fracassou em suas apresentações no festival. Uma parte do público abandonou a sala. Deve ter sido exaustivo para a Companhia. Mas para sermos fiéis às impressões podemos avançar dizendo que se as apresentações não foram boas, tiveram, paradoxalmente, ótimo efeito. Isso nos chama a pensar sobre o porquê de a montagem acontecer quase que como uma epifania crítica nas apresentações feitas no teatro Oficina, em São Paulo, e agora ter dificuldades para se sustentar, no Teatro da Reitoria da Universidade federal do Paraná.
O primeiro palpite é, naturalmente, quanto à plateia mesmo. Sem precisar entrar no mérito das provocações de fundo que a montagem traz, é nítido que uma coisa é o teatro Oficina, lugar para onde os espectadores quase nunca vão desavisadamente. Ali não temos público, temos rigorosamente uma plateia, em geral homogênea e aderente às posições que o espetáculo sustenta. Em Curitiba e, especialmente, no ambiente de um festival de teatro que a população frequenta, o público é seguramente mais heterogêneo. O espetáculo tem cerca de três horas de duração e não é docinho de coco. Nesta adaptação o grupo investe nos paralelismos entre as fábulas narradas e a crítica às religiões, à direita raivosa e seus feitos, à pauta que vem dela no Brasil de agora. Isto é formalizado em linguagem paródica, na ironia atenta, na caricaturização, no humor corrosivo que mira os alvos colocados sobre as cabeças, os corações ou no baixo ventre dos cidadãos e cidadãs de direita.
Já no poema da abertura o espetáculo faz a denúncia do moralismo que não se constrange em abraçar o assassinato. Impossível não relacionar com a guerra que estoura inocentes no Oriente Médio. Depois, A vida de Galileu atualiza o horror pela arte e pelo conhecimento científico e chama à razão. Na passagem de Santa Joana dos matadouros vem a crítica à “fé de resultados” em que um quarto da população brasileira está embarcada, e a tragédia do capital sobre os descapitalizados. O autoritarismo, a ignorância intencionada, a violência e a idiotia tomada como valor aparecem em Arturo Ui – o paralelo entre Hitler e o ex-presidente Jair Bolsonaro aparece em uma arqueologia cômica dos símbolos e demandas da direita.
Não há dúvida, pois, que o espetáculo deve desarranjar consciências na plateia de uma cidade que na última eleição presidencial atribuiu ao conservadorismo quase 70% dos votos. Supomos que isso justifica a saída de muita gente durante todo o espetáculo. É nesse sentido que se pode intuir que ele funcionou muito bem. Se o efeito existe é porque as provocações puderem ser lidas, o que tem a ver com o alcance da teatralidade. O abandono de parte do público, supostamente conservador, nos diz que, sim, as provocações teriam qualidade política a ponto de fazer uma parte da plateia protestar.
Escolhas e efeitos
Fora essa hipótese sobre o efeito do espetáculo naquele contexto, podemos ainda dizer que há uma série de escolhas que, se este argumento permanecer de pé, podem ser interessantes para ver, agora por dentro, de que maneira a cena articula os pressupostos artísticos herdados de Brecht. Naturalmente, corre-se o risco do enquadramento extemporâneo. Não há check list do teatro brechtiano a ser atendido, ainda mais em uma época na qual parte do seu arsenal crítico já foi colonizado pelo capital, sobretudo pela publicidade de produtos. “Aquele ótimo ator que faz o comercial da Bombril é brechtiano. Com ou sem Brecht”, nos dizia o professor Roberto Schwarz, já há anos. Mas se por um lado parte do repertório de soluções foi esterilizado, por outro o legado de Brecht renasce na fricção com a época. Basta ver o quanto são pertinentes as relações feitas pelo Teatro Promíscuo com o estado atual das coisas.
O projeto é um presente para o diretor Rogério Tarifa, que vem do teatro de rua e traz para o espetáculo a intuição sobre as possibilidades da cena aberta. Sem precisar de grandes aparatos, faz as marcações em diálogo com o monta-desmonta dos quadros. Ordena a dinâmica entre palco e plateia sem deixar o espetáculo desamarrar-se. O espaço do teatro Oficina, com seu corredor no meio das fileiras de espectadores, lhe era mais favorável. Em Curitiba as relações entre texto e dramaturgia encontraram alguns entraves. O espaço, como sempre, define muito o rendimento dramatúrgico. O que quer dizer que há consequências.
O emparedamento do espetáculo, junto com um plano de luz que mantém a plateia no escuro em boa parte da encenação parece levar o elenco aqui e ali para tempos mais distensos, mais interiorizados. A luz escura sem dúvida nos leva a receber a cena mais como voyeuristas que como público em atividade de construção intelectual. Escolhas artísticas são sempre legítimas, não há modelo formal a ser cumprido. Mas é importante verificar o sentido dessas escolhas quanto à natureza do que discute.
Já há na montagem uma vocação apontada pelo projeto de direção, em que a abertura da cena parece ser importante. Na visão de Rogério Tarifa é fácil perceber que o público está em diálogo permanente com as narrativas, mesmo quando não é abordado diretamente. Não à toa, nas apresentações de Curitiba uma parte dos espectadores e espectadoras é colocada nas laterais do palco. Por isso o relativo ensimesmamento que a cena à italiana impõe ao espetáculo não lhe é favorável. Para resumir em uma imagem que talvez seja útil podemos dizer que nesta montagem, embora o elenco desça aqui e ali para a área reservada ao público, não há cena “de plateia”, porque todas as cenas são potencialmente “de plateia”. Dá o que pensar, pois.
Sem demérito às outras artistas do elenco, sobre as quais se poderia também falar, é um espetáculo totalmente a partir de Renato Borghi. Com ele, para ele. A comemoração de 65 anos sobre as tábuas tem nos levado a homenagens e à reverência, e é justíssimo, ele não precisaria fazer mais nada, bastaria estar lá, a lenda e a legenda estão dadas. É um artista que viveu a cena moderna e vive a cena contemporânea em muitas das suas frentes mais importantes. Tem um tamanho que não precisa ser medido.
Outra maneira de dizê-lo talvez seja apontando o quanto ele carrega, neste espetáculo, não apenas a sua própria história como também as variações da arte do ator no teatro dessas décadas. Zé Celso olhando tudo, em O que nos mantém vivos estão nele a personagem construída em termos de caracterização e psicologia, assim como os tipos, quando são chamados. Está lá o distanciamento crítico feito sem esforços para a entrada e saída das personagens. Estão lá o depoimento íntimo e a autoescritura, favorecidos pela forma como a dramaturgia contempla a sua presença. Está lá, enfim, o performer, emprestando a Brecht a sua musculatura, trabalhada por muitos anos de lida, capaz de acender em nós as perguntas sobre a verdade, mas sobretudo a desconfiança e da dúvida, como queria o alemão. Intensidades emocionais no mesmo movimento de afirmação da razão.
Isto em uma época, a nossa, que carece demais desses trânsitos. Borghi dá o melhor quanto àquela disputa apontada no início – a defesa das ideias que nos organizam na direção da igualdade de condições e da proteção dos desejos diferentes. Todas essas coisas estão na sintonia fina do espetáculo – nas suas escolhas sobre o que dizer e na busca dos modos como fazê-lo. Com os seus parceiros e parceiras de cena Borghi honra o teatro a partir de uma estratégia sempre nobre, que é a do enfrentamento. E do melhor lugar possível – do olho do furacão, que sempre foi o seu palco.
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FICHA TÉCNICA
Idealização e adaptação: Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas;
Direção: Rogério Tarifa;
Elenco: Renato Borghi, Débora Duboc, Elcio Nogueira Seixas, Cristiano Meirelles, Nath Calan, Rafael Camargo e Fábio Cardoso;
Direção de Atores: Rogério Tarifa e Luiz André Cherubini;
Direção Musical: William Guedes;
Composição Musical Original: Jonathan Silva;
Colaboração dramatúrgica: Cristiano Meirelles, Débora Duboc, Diego Fortes, Georgette Fadel, Luiz André Cherubini, Nath Calan e Rogério Tarifa; Figurinos: Juliana Bertolini;
Cenografia: Andreas Guimarães, Luiz André Cherubini e Rogério Tarifa;
Iluminação: Marisa Bentivegna;
Teatro de Bonecos e Objetos: Luiz André Cherubini;
Direção de movimento e Preparação Corporal: Marilda Alface;
Visagismo: Tiça Camargo;
Camareira: Graça;
Assistência de Luz: Rodrigo Damas;
Operação de Luz: Rodrigo Damas; Operação de Som:
Dugg Mont;
Microfonista: Felipe Grillo;
Contrarregragem: Andreas Guimarães, Diego Dac, Roberto Tomasim;
Cinema ao Vivo: Çiça Lucchesi – vídeo arte, Igor Marotti – cinegrafia;
Cenotécnica: Andreas Guimarães, Roberto Tomasim e Cássio Omae;
Estagiária em cenário e figurino: Poeta Martinez;
Assistente de Figurinos: Vi Silva;
Confecção de Figurinos: Juliana Bertolini, Vi Silva, Francisca Lima (costura), Aldenice Lima (tricôs) e Laura Bobik (intervenções gráficas);
Confecção dos bonecos: Mandy e Agnaldo Souza;
Confecção de Flores: Coletivo Flores Pela Democracia;
Eletricista: Marcelo Amaral;
Assessoria de Imprensa: Adriana Monteiro – Ofício das Letras;
Marketing Digital: Platea Comunicação e Arte;
Criação de conteúdo e mídias sociais: Fernanda Fernandes e Lukas Cordeiro;
Fotografia: Bob Sousa e Priscila Prade;
Estagiária em produção: Rommani Carvalho;
Produtora Colaboradora: Camila Bevilacqua;
Produção Executiva: Carolina Henriques;
Direção de Produção: Jessica Rodrigues;
Coordenação Geral: Teatro Promíscuo (@teatropromiscuo)) / Renato Borghi Produções Artísticas LTDA.
Nota do Editor: O texto acima foi produzido pelo projeto “Encontros Críticos”, criado pela curadoria do Festival de Curitiba em 2022. Dentro do “Interlocuções”, a ação incentiva o público a debater a peça com os artistas logo após a sessão, com mediação de críticos de teatro convidados. A partir do debate, os críticos convidados escrevem um texto sobre o espetáculo para ser publicado no site oficial do Festival de Curitiba. O FRINGE vai publicar toda a produção de críticas teatrais do projeto "Encontros Críticos" .