Intelectual, jornalista, militante cultural – e política –, musa do antropofagismo andradiano, Patrícia Galvão (1910-1962) tem um lugar garantido no panteão dos fomentadores do Modernismo no Brasil.

Mesmo que não tenha participado da icônica Semana de Arte Moderna de 1922 – afinal, tinha apenas 12 anos de idade na época e até precocidade tem limites –, ela logo se engajou no movimento e nas suas ideias. Aos 18 anos, essa moça nascida em uma família abastada de São João da Boa Vista, interior de São Paulo, já estava integrada àquilo que de mais moderno e instigador a intelectualidade paulistana poderia incrementar.

Mal terminou a Escola Normal em São Paulo – para onde a família se mudara quando ela tinha 15 anos –, se uniu ao Movimento Antropofágico por influência de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, começou um relacionamento conturbado com o próprio Oswald que durou anos e ganhou o apelido que a colocou no mundo cultural da época e para toda a eternidade: Pagu.

Pagu e Oswald de Andrade. Foto: Acervo Lúcia Teixeira/Centro Pagu Unisanta

Isso, graças a um equívoco do poeta Raul Bopp, que achou que a moça de olhar lânguido chamava-se “Patrícia Goulart”, e não Galvão, daí a junção fonética das primeiras sílabas de um nome que não existia. “Pagu tem uns olhos moles/ uns olhos de fazer doer./Bate-coco quando passa./Coração pega a bater./ Eh Pagu eh!/Dói porque é bom de fazer doer…”

Os olhos podiam ser “moles”, como alinhavou o criador de Cobra Norato, mas eram também atentos, argutos e questionadores. E muito desse questionamento e dessa lucidez Pagu colocou em livros – como Parque Industrial, de 1933 –, em suas percepções políticas – passando do comunismo stalinista ao socialismo trotskista – e, antes de tudo, em seus textos jornalísticos.

Porque Patrícia Galvão era, pode-se dizer, principalmente uma jornalista muito bem articulada. Afinal, escreveu para inúmeros jornais desde a década de 1930 até as vésperas de sua morte em um dia 12 de dezembro, trinta anos depois, quando já vivia em Santos com o segundo marido, o jornalista Geraldo Ferraz, com quem se casou ao sair da prisão, em 1940.

É esse material jornalístico que chega agora ao público em uma caprichada e alentada antologia editada pela Editora da USP, Edusp, e organizada pelo pesquisador americano Kenneth David Jackson, professor em Yale. Estudioso há décadas da obra de Patrícia Galvão, Jackson é também o responsável, junto com sua mulher Elizabeth, pela tradução para o inglês de Parque Industrial.

 

Há, entretanto, uma curiosidade no subtítulo da antologia organizada por Kenneth Jackson – Palavras em Rebeldia – Uma antologia do jornalismo de Patrícia Galvão (Pagu). A curiosidade reside no fato de que a esmagadora maioria das quase duas centenas de textos que preenchem as mais de 600 páginas da antologia não leva a assinatura “Pagu”. Para a História, Patrícia Galvão é Pagu. Mas não para ela.

“Para usar um lugar-comum caracterizando uma situação nada clichê, o jornalismo corria nas veias de Patrícia Galvão. Ela usou, além de seu nome oficial, muitos pseudônimos como jornalista – Patsy, Gim, Pt., Pat, Mara Lobo, Moleka, entre outros – mas não o que ficou famoso”, explica seu filho e também jornalista Geraldo Galvão Ferraz, morto em 2013, no prefácio que deixou pronto para um livro que nem o próprio Kenneth Jackson acreditava que um dia sairia a lume.

“Pagu ficou mais como o codinome da mulher que fez da vida uma forma de militância. Não é para menos que, quando se desiludiu com o Partido Comunista, passou a detestar que a chamassem de Pagu, pois esse era o rótulo de uma página virada. É irônico que exatamente esse nome seja a etiqueta de sua sobrevivência na memória histórica e cultural do Brasil.”

Para sempre “a mulher do povo”

Esta antologia editada em formato físico com o que Patrícia Galvão escreveu em mais de três décadas de militância cultural pode ser, no entanto, considerada uma preparação para algo muito maior: a Edusp disponibilizou, em formato de e-book, toda a obra jornalística da mulher que, a exemplo de seu colega modernista Mário de Andrade, foi 300, foi 350.

Patrícia Galvão – ou Pagu, ou Ariel, ou Mara Lobo – foi muitas. E foi única – e sempre com a visão e o desejo de ser uma “mulher do povo”, como ela certa vez se descreveu e também o nome de uma coluna onde começou a publicar seus textos no jornal de esquerda O Homem do Povo, nos anos 1920. Nessa versão eletrônica, também organizada por Kenneth Jackson, o material é exponenciado: são quatro volumes de e-books que abordam os vários temas sobre os quais Patrícia Galvão se debruçou: política, artes, literatura, teatro e grandes autores do Brasil e do mundo.

Estes temas também estão, claro, na versão impressa e abridged da pesquisa hercúlea de Jackson. Os 199 textos que constam da antologia cobrem um período que vai desde 1929 – seu tempo em O Homem do Povo – até seu período final, entre 1954 e 1961, aí já em A Tribuna, de Santos, passando por publicações como Diário de Notícias e Vanguarda Socialista, do Rio de Janeiro, e A Noite, Diário de São Paulo e Fanfulla, estes da capital paulista. E é interessante notar como, com o passar do tempo e dos acontecimentos, Patrícia Galvão acaba por se desgarrar do seu famoso e – em determinado momento – incômodo apelido.

Fotografia feita durante exposição de Tarsila do Amaral no Rio de Janeiro, em 1929: Pagu (a primeira da esquerda) está ao lado de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral – Imagem: Domínio Público via Wikimedia Commons

Enquanto mantinha sua carteirinha de membro do PCB, até meados da década de 1930, ela assinou seus textos jornalísticos e suas crônicas como “Pagu”. Mas aí, Pagu fez uma longa viagem pela Manchúria, União Soviética e França em 1935. E quando voltou, decepcionada com o que havia presenciado, já não portava mais o apelido – era Patrícia Galvão.

E seria também “Solange” – homenagem a uma suposta aluna de pintura que conhecera em Paris e que acabaria “esmagada pelo nazismo” –, seria “Ariel” e quantas outras personas pudesse criar ao longo das mais de duas décadas seguintes. Mas não seria mais Pagu.

Patrícia rejeitou o Partido Comunista do Brasil (depois, “Brasileiro”) e este não se fez de rogado: não só rompeu com Patrícia Galvão como a expulsou formalmente em 1937, falando de sua transição para um “grupo fracionista trotskista”, sem poupar termos fortes: em um panfleto do Partidão intitulado “Contra o Trotskismo”, de março de 1939, o PCB a acusa de ser “muito conhecida por suas atitudes escandalosas de degenerada sexual”. A antologia da Edusp traz, além dos textos jornalísticos de Patrícia Galvão, o processo movido contra ela pelo Tribunal de Segurança Nacional (1936-1940, período em que ficou presa), o inquérito policial de 1936 e a resolução do PCB sobre sua expulsão.

E a sua produção jornalística, a partir da saída do Partido Comunista, longe talvez até do olhar panfletário que eventualmente uma ideologia – qualquer que seja ela – pode acarretar, se adensa, fica multifacetada. Patrícia Galvão continuava como um ser político, mas também era um ser curioso, observador e atento.

Porque, como explica Kenneth Jackson em uma precisa e longa introdução ao volume – mas sem sua assinatura –, ela “criou em cada fase de sua vida um jornalismo de crítica e de compaixão, ao mesmo tempo analítico e íntimo, objetivo e pessoal, profissional e criativo”.

É esta amplitude de olhares e de ações que se pode observar em cada um dos textos da antologia. Seja para falar sobre o comportamento das “senhorinhas” paulistanas, seja para analisar Fernando Pessoa ou para descrever as “monstruosidades” que presenciou na China ou mesmo para tecer considerações sobre literatura, teatro, música e escritores e artistas, entre tantos personagens que ela aborda, como Murilo Mendes, Tarsila, Jorge Amado e Goeldi (leia trechos de alguns de seus textos no box abaixo), Patrícia Galvão caracterizava seu jornalismo por “uma participação ativa na vida paulistana, e mais tarde santista, além da capacidade de expressar ideias e sentimentos em prosa sucinta e sintética, à base de observações e experiências pessoais”, escreve Kenneth Jackson.

E eram também textos, sempre que possível, eivados de uma prosa poética e um tom de bate-papo informal que levava seus artigos e crônicas para além do simplesmente jornalístico. “Respondo a meu paciente leitor, a meu ilógico leitor, que tolera aqui as minhas sandices, que também sou um mero mortal.

Gosto muito do meu churrasco e das minhas batatas fritas e se sonho com azuis e com alturas é porque desconheço estas distâncias e ignoro o caminho para lá. Se o meu amigo não sonha é lastimável porque ficará apenas com o bife e as batatas”, escreveu ela – assinando como “Ariel” – na crônica “Resposta”, no jornal A Noite em 1º de outubro de 1942.

A publicação de Palavras em Rebeldia, afirma Geraldo Galvão Ferraz em seu prefácio, “é um acontecimento cultural de importância para a história intelectual e política do Brasil e, claro, para a história do jornalismo brasileiro, de bibliografia tão pobre”. Exageros de um filho saudoso? Não, é uma análise isenta de um jornalista cultural que soube, ele próprio, trilhar seu caminho de fama e respeitabilidade.

O filho, na verdade, fala um pouco mais adiante, com a sensibilidade que caracteriza também os artigos da mãe: “A leitura destes textos, muitos dos quais eu desconhecia, foi como uma madeleine proustiana de sabor inigualável. Com ela, logo estava ouvindo de novo as teclas da Remington batendo e rompendo o silêncio da tarde praiana de mormaço e de vento noroeste que trazia o cheiro do mar”.

Texto de Marcello Rollemberg para o Jornal da USP

Compartilhar.

Sandro Moser é jornalista e escritor.

Deixe seu comentário

Patrocínio

Realização

Fringe é uma plataforma de comunicação e entretenimento sobre arte e cultura brasileiras criada dentro do Festival de Curitiba e conta com o patrocínio da Petrobras

Sair da versão mobile