Texto: Luiz Prado, do Jornal da USP

Um conjunto de lançamentos da Ateliê Editorial torna mais uma vez disponível aos leitores capítulos importantes da história da televisão, do rádio e do teatro brasileiros.

Trata-se das obras do professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) David José Lessa Mattos, que compõem o Projeto David José, realização da editora em parceria com a TV Cultura, a Cinemateca Brasileira, a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e o Ministério da Cultura.

São três obras que ganham reedições ou chegam pela primeira vez às livrarias: O Espetáculo da Cultura: Teatro e TV em São Paulo (1940-1950), A TV Antes do VT: Teleteatro ao Vivo na TV Tupi de São Paulo (1950-1960) e Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil, em dois volumes. Reunidas, tratam simultaneamente de uma parte fundamental da história da cultura nacional do século 20 e da própria trajetória de vida do autor.

Isso porque o nome de Mattos também se liga aos primórdios da televisão e se inscreve nas páginas dos palcos. Nos anos 1950, ainda criança, o professor foi ator nos teleteatros da TV Tupi-Difusora em São Paulo, trabalhando nas obras infantojuvenis coordenadas por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. Nesse período, destacou-se por fazer o papel de Pedrinho na adaptação do Sítio do Pica-Pau Amarelo. A carreira artística seguiria pelos anos 1960, quando Mattos integrou o Teatro de Arena, atuando nas montagens de O Tartufo, Arena conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, todas dirigidas por Augusto Boal.

Desde essa época, arte e pesquisa integraram a trajetória do professor. Nos anos 1960, enquanto estava no Teatro de Arena, Mattos se formaria em Ciências Sociais na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, continuando seus estudos depois na França, na Universidade de Paris X-Nanterre, onde obteria o título de mestre em Sociologia. A carreira acadêmica o levaria a ser professor de Sociologia e Política na Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo e técnico docente de pesquisa na Unicamp, onde se aposentaria como professor do Instituto de Artes (IA).

O Espetáculo da Cultura: Teatro e TV em São Paulo (1940-1950), de David José Lessa Mattos, Ateliê Editorial, 248 páginas, R$ 120,00

Teatro e Televisão como projeto político

O Espetáculo da Cultura: Teatro e TV em São Paulo (1940-1950) é fruto da tese de doutorado de Mattos, defendida no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e publicada em livro originalmente em 2002. O volume parte de dois acontecimentos centrais na cena cultural paulista: o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948, e da PRF-3 TV Tupi-Difusora, em 1950.

O argumento do autor: a inauguração do TBC e o nascimento da Tupi-Difusora são elementos que fizeram parte de um projeto cultural desenvolvido pelas antigas lideranças políticas e intelectuais de São Paulo. Segundo Mattos, esses dois acontecimentos estão inscritos nesse projeto de caráter educativo e formativo, interessado na reconstrução democrática do País após o Estado Novo varguista.

“Naquele momento, todos valorizaram a arte e a cultura, encarando-as como instrumentos necessários à construção na nova sociedade brasileira”, escreve o autor. Integravam, de acordo com o pesquisador, o espírito de uma época na qual uma geração de artistas, intelectuais e empresários entusiastas da arte buscaram traçar e construir um projeto de futuro para a nação, no qual arte e cultura tinham lugar de destaque, com significado ético. “Esse significado é um dos traços mais expressivos da produção artística e cultural paulista nas décadas de 1940 e 1950.”

O autor traça um panorama cultural e artístico da capital paulista durante as primeiras décadas do século 20, mostrando a atuação, sobretudo, das elites políticas e econômicas. Latifundiários do setor cafeeiro descendentes de famílias tradicionais e, depois, imigrantes e seus filhos que enriqueceram nos ramos do comércio e da indústria – grupos que se envolveram com o teatro amador, o rádio, a imprensa e a televisão.

Para se ter uma ideia da dimensão dos interesses e movimentações desses grupos, basta enumerar algumas das iniciativas que surgiram apenas durante a década de 1940. Foi nesse período que foi criado o Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1947, e o Museu de Arte Moderna (MAM), em 1949. No setor educacional, surgiram a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, em 1947, e a Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em 1948. Em São Bernardo do Campo, ainda, foi instalada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em 1949, conhecida como a Hollywood paulista.

Nesse quadro, a inauguração do TBC e a estreia da Tupi são vistas por Mattos como dois “flagrantes” desse processo cultural paulista. Movimentos realizados por particulares com dinheiro e contatos para dispôr e uma bagagem de ideias liberais e em certa medida com preocupações sociais. Mas também por setores mais amplos, que se apaixonaram pelo teatro e pelo rádio e que viram nas artes e na cultura possibilidades de realização profissional e pessoal. Do rádio e do teatro, justamente, é que viria a primeira geração dos trabalhadores da televisão.

“O teatro e a televisão em São Paulo, nas décadas de 1940 e 1950, antes de terem sido formas de expressão artística e cultural vinculadas a setores ou camadas sociais de uma sociedade que se industrializava e se modernizava, foram primordialmente fenômenos artísticos e culturais correlacionados, entrelaçados e, ambos, articulados ao projeto comum das tradicionais lideranças políticas e intelectuais de São Paulo que se mobilizaram em torno da ideia da construção de uma sociedade democrática no Brasil”, assinala Mattos na obra.

A era do teleteatro

A TV antes do VT: Teleteatro ao Vivo na TV Tupi de São Paulo (1950-1960), por sua vez, é um livro composto a partir de fotografias feitas pelo irmão de Mattos, Raymundo Lessa de Mattos, que foi fotógrafo da TV Tupi entre 1958 e 1960. Nesse período, Raymundo registrou imagens dos bastidores da emissora e de vários programas, sobretudo dos teleteatros ao vivo.

O volume reúne grande parte das 1.800 fotografias que Raymundo preservou de sua passagem pela TV Tupi. O material começou a ser recuperado por Mattos a partir de 2000, quando procurou o irmão e teve acesso aos negativos. Em 2007, com tudo já digitalizado, o pesquisador passou ao trabalho de identificação e classificação do acervo, que resultou em um livro publicado em 2011, agora em nova edição pela Ateliê Editorial. Às fotos de Raymundo Mattos acrescenta textos explicativos e legendas com dados a respeito do que o irmão captou.

São registros de quando toda a programação da televisão brasileira era feita ao vivo, antes da entrada do videotape (VT) nas emissoras. Era o momento de maior glória do teleteatro ao vivo no País, quando a Tupi chegava a colocar no ar semanalmente cerca de dez programas diferentes do gênero. E as outras emissoras da capital paulistana, como a TV Record e a TV Paulista, também investiam no formato.

Os teleteatros mobilizavam uma equipe grande que contava com atores, cenógrafos, produtores, redatores, operadores de câmera, iluminadores, operadores de vídeo, operadores de áudio, diretores de TV, sonoplastas, carpinteiros, marceneiros, pintores e montadores de cenário, entre outras funções. Diante das câmeras estavam atores integrantes do elenco da emissora, mas também artistas do teatro, que apresentavam adaptações literárias, cinematográficas e clássicos da dramaturgia, além de produções originais.

Francisco Milani, Glória Menezes, Laura Cardoso, Lima Duarte, Luís Gustavo e Rolando Boldrin são alguns dos atores e atrizes registrados pelas lentes de Raymundo. As imagens retratam as produções do Grande Teatro Tupi – primeira série de teleteatro da TV brasileira, que estreou em 1951 e durou até 1965 – e do programa TV de Comédia, que foi ao ar de 1957 a 1967. Também há fotografias das produções realizadas pelo teatro-escola de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, que apresentou uma série de programas na Tupi entre 1952 e 1963, dentre eles Fábulas Animadas, Teatro da Juventude e Sítio do Pica-Pau Amarelo.

As lentes de Raymundo Mattos também captaram imagens de outros programas da emissora, que na época veiculava uma programação diária de 12 horas. Aparecem no livro o seriado de aventura O Falcão Negro, os humorísticos Fuzarca e Torresmo e Bola do Dia, a reunião de artistas de Almoço com as Estrelas e o noticioso Edição Extra, que conta com o registro de uma visita do líder cubano Fidel Castro aos estúdios da emissora.

A TV Antes do VT: Teleteatro ao Vivo na TV Tupi de São Paulo (1950-1960), de David José Lessa Mattos, Ateliê Editorial, 280 páginas, R$ 352,00

Depoimentos pioneiros

Já os dois volumes de Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil, organizados por Mattos, reúnem 14 entrevistas de artistas e profissionais que atuaram em emissoras paulistas de rádio nos anos 1940 e participaram dos primórdios da televisão, nas décadas de 1950 e 1960. O livro é a transcrição de depoimentos gravados em vídeo, no final dos anos 1990, pela advogada, escritora, atriz e também pioneira da televisão Vida Alves (1928-2017). Formada pela Faculdade de Direito da USP, Vida foi atriz, escritora e produtora de programas nas rádios Tupi e Difusora de São Paulo e na TV Tupi, onde trabalhou por 30 anos.

Vida começou a realizar as entrevistas em 1997, com o intuito de salvaguardar a memória do nascimento da televisão no País, dentro do contexto da criação da Pró-TV – Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira, hoje chamada Museu Brasileiro de Rádio e TV (MBRTV). Mattos teve contato com o acervo quando procurou a artista durante sua pesquisa de doutorado, que daria origem a O Espetáculo da Cultura: Teatro e TV em São Paulo (1940-1950).

A ideia de levar as entrevistas para um livro partiu do próprio Mattos, que trabalhou o texto dos depoimentos e acrescentou notas explicativas, além de cuidar da revisão. O primeiro volume foi publicado em 2004, mas o segundo só seria lançado mesmo agora, em 2024. Neles constam nomes como Lima Duarte, Dias Gomes, Walter Avancini, José Bonifácio Sobrinho (Boni), José Blota Junior, César Monteclaro e Tatiana Belinky.

Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil (volume 1), de David José Lessa Matos (organizador), Ateliê Editorial, 168 páginas, R$ 81,29

Os depoimentos dão conta de uma geração que começou no rádio e participou da inauguração da primeira emissora de televisão do País, a PRF3-TV Tupi-Difusora, em 1950. Destacam-se os programas de teleteatro, que integraram com relevância a grade de programação das TVs na década de 1950 e início dos anos 1960, como os realizados por Tatiana ao lado de Gouveia e os estrelados por Lima Duarte. Além disso, estão lá os anos iniciais da Tupi, da TV Excelsior – responsável pelas primeiras novelas com capítulos diários da televisão brasileira – e também da TV Globo, fundada em 1965 e por onde passariam Boni, Dias Gomes, Lima Duarte, Walter Avancini e Marcos Rey.

Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil (volume 2), David José Lessa Matos (organizador), Ateliê Editorial, 216 páginas, R$ 104,50

Sobre teleteatros e telenovelas

Coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, a professora Maria Immacolata Vassalo de Lopes conhece Mattos de longa data. A professora foi sua colega na graduação em Ciências Sociais na FFCL e se lembra muito bem de Mattos como o Pedrinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Dentre as recordações do convívio na faculdade, Maria Immacolata destaca as conversas a respeito das cartas que Mattos recebeu de seus fãs.

“David teve a oportunidade de ser um sujeito que é o próprio objeto de estudo. Ele é o observador, mas também faz parte do objeto investigado”, comenta a professora, referindo-se aos livros escritos por Mattos e sua trajetória artística como ator. “É uma situação muito particular, um olhar de dentro, do próprio caso estudado.”

Os interesses de pesquisa de Maria Immacolata se voltam especialmente para as telenovelas, produções que fazem parte dos primórdios da televisão no Brasil. A primeira telenovela brasileira foi ao ar em 21 de dezembro de 1951, menos de dois anos após a inauguração da TV Tupi-Difusora. Era Sua Vida me Pertence, estrelada justamente por Vida Alves, que seria a responsável pelas entrevistas que originariam Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil. Vida fazia par com Wálter Forster, que também assinou o roteiro e dirigiu a produção. Com 15 episódios, apresentados ao vivo, Sua Vida me Pertence ia ao ar duas vezes por semana em capítulos de 20 minutos e trouxe o primeiro beijo da TV nacional.

Em seus trabalhos, Maria Immacolata procura entender como a teledramaturgia brasileira, que aparece logo no início da televisão por aqui, acabou adquirindo caraterísticas próprias e se tornou, com as telenovelas, o principal produto da nossa TV. Segundo a professora, trata-se de uma jornada muito incerta, em busca de “uma linguagem que foi se fazendo aos poucos, uma linguagem própria”, comenta. “Não se trata de pensar a televisão apenas no sentido de estilo, de recursos técnicos, mas de conteúdo, das histórias que são contadas.”

Uma das principais características das telenovelas nacionais, salienta Maria Immacolata, é o naturalismo no conteúdo de suas histórias e seu olhar para a realidade dos espectadores e do próprio País. “Veja uma novela e você vai entender muito do que está acontecendo, pelas temas que são tratados de maneira ficcional”, comenta a professora.

Traço que denota, aponta Maria Immacolata, certas diferenças em relação aos teleteatros, por exemplo. Neles, destaca-se o grande número de adaptações literárias levado às telas. Nessas adaptações, a trama não raro se passava em outras épocas e países. Além disso, havia a interpretação dos atores inspirada nos palcos teatrais, um elemento que também iria desaparecer das novelas.

Elenco de atores e humorista da Tve Record na década de 1960. Foto: Record TV/Reprodução.

Um marco desse naturalismo, conta a professora, foi Beto Rockfeller, novela exibida pela TV Tupi entre 1968 e 1969 que se destacou pelo coloquialismo na fala das personagens e um afastamento da impostação da voz típica do teatro. Além disso, a novela também se notabilizou pelas gravações em externas, que deixavam os estúdios e colocavam os atores nas ruas, em meio à cidade, reforçando o realismo. Eram modos de se contar histórias mais próximos do cinema do que do teatro. E o próprio conteúdo da trama, que tratava de um alpinista social e das relações entre classes, também se encaminhava para o naturalismo.

“É muito mais uma realidade ficcionalizada do que fantasia”, afirma Maria Immacolata. “A ficção é outra maneira de contar a realidade.” Para a professora, as telenovelas, tanto do passado quanto do presente, podem ser entendidas como história social, narrativas endereçadas à nação e também como um recurso comunicativo. “Há sempre questões sociais envolvidas e não apenas as relações pessoais e a psicologia das personagens”, finaliza.

 

 

 

 

 

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