O fechamento de um bar e o desaparecimento de alguém a quem se ama geram sensações afins. Sei disso há muito tempo: no es lo mismo, pero es igual. Como dizia aquele (desaparecido) poeta manauara de má fama: “quando um amigo morre, fecha um bar dentro da gente”
Há bares que se vão em lenta agonia, resistindo ao assédio do tempo e seus agentes corrosivos, assim como há pessoas que se vão morrendo aos poucos. Há, porém, os que fecham sem dar sinais, e que são como os amigos e amores que morrem de susto, bala ou coração.
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As ausências repentinas, como no poema de Manuel Bandeira, não são de pronto registradas pela alma. Fica-se com a impressão de que quem partiu logo voltará (“estaria na chácara de São Roque?”) e, no início, não lhe sentimos a falta, mas aos pouco vamos dando conta do que nos espera.
Eis o sentimento que tento organizar para escrever sobre o fechamento, desaparecimento e ausência da Padaria Verdes Mares, no Alto da Glória, onde passamos boa parte dos dias felizes de nossas vidas e que não reabriu depois das férias coletivas do fim do ano passado, nem vai.
Para mim, desde sempre era a “padaria do Português”, homenagem ao gentílico de seu Ramiro, o patriarca da numerosa família de bravos comerciantes de ascendência ultramarina que usava tamancos (só ele) e trabalhava (todos) das 05h às 22h.
Foi ali, seu moço, que eu aprendi a fazer contas, a dar e receber bom dia, a me interessar pela vida dos outros como forma de entender a minha própria. Cresci naquela área, pois sempre fomos, além de uma família, um enclave atleticano no Alto da Glória e frequentei a “padaria” desde quando o Casal 20 vestia rubro-negro e a padaria ainda se chamava “Sol Levante”.
Lembro que comprávamos fichas telefônicas para passar trotes no orelhões que ficavam na porta de entrada e que eu e meus irmãos ficávamos em posições diferentes na “fila do leite” durante a crise de abastecimento do Plano Cruzado, para garantir nosso cafezinho cortado com bolinhos da graxa que a mãe fazia nos dias frios.
E lembro que a mesma mãe pedia para lhe comprar um Free Longo enquanto lavava a louça. Podíamos pegar uma paçoca também e, ao fim, bastava dizer quatro mágicas palavras: “coloca na conta da Nica”.
Abre-te sésamo que usei até entrar na faculdade e depois que troquei a gengibirra pela cerveja. E era lá que, nesta época, comprávamos as caixinhas que levávamos no churrasco ou tomávamos a última, já de manhã, entre os cafés e mistos quentes da classe trabalhadora.
O espaço anexo à Padaria Verdes Mares, que ficava na esquina do pré-histórico caminho do Itupava com Rua Mauá, onde éramos todos barões, foi o mais próximo que Curitiba já chegou de um bom bar tijucano.
Tendências políticas, classes sociais, visões de mundo diversas se misturavam enquanto a cerveja colhida diretamente dos freezers horizontais fluía mansa em tardes que caíam como caem hoje os aviões particulares, e a Tribuna do Paraná, que ainda tinha dois cadernos, um policial e um de esportes, circulava entre as mesas.
O grande José Alexandre Faria escreveu uma bela canção que congelou este tempo para sempre, gravada pelos Squalidus Johnsons:
No final dos anos 1980, espertamente, o pessoal transformou o espaço, depois ampliado, num formidável restaurante de cardápio fixo, mas que era moldado ao gosto particular de cada freguês. Da consistência da gema ao ponto dos bifes, passando pelo temperos da peixada, você podia escolher seu prato, e nunca se comeu tão bem e barato no bairro e, talvez, na cidade.
A Peixada alias foi objeto de matéria do saudoso Baixa Gastronomia.
A ponto de que muita gente de outros paragens ter passado a frequentar a “padaria” e isso teve reflexos imobiliários e sociais, pois artistas, publicitários e gente desse tipo de enfermaria e CNAE passou a usá-la como ponto de reuniões e, logo, a ocupar os imóveis art-decò da região com seus projetos e nisso nunca houve nada tão parecido com uma padaria descolada de São Paulo em Curitiba.
Brindei minhas maiores alegrias e chorei tristezas ainda maiores naquelas mesas e aprendi coisas que nenhuma escola ensina como a máxima daquele chaveiro doidão: “sempre peça outra, porque conta de boteco uma hora alguém vem e paga”.
Lembro do dia em que um cara veio oferecer seus serviços para quem quisesse simular a própria morte – ele tinha uma tabela e uma lista de providências a tomar – e de conversas muitas sobre futebol, política e a morte da bezerrada toda.
Tio Dan & Zé
Fiquei muito amigo dos personagens centrais do estabelecimento, um deles o José Carlos Grande, o Zé, que estudara filosofia e com quem passava tardes falando sobre a vida, a morte e a vida após a morte, enquanto ele abria e fechava a caixa registradora sem parar. O outro pilar do espaço era o “Tio Dan”, o kemosabe, que jogava bola tão bem quanto pescava e é o cara mais boa praça do mundo.
Imagino que eles decidiram tampar os fornos e chavear os freezers após décadas e mais décadas de trabalho duro depois que o dono “pediu o imóvel”. Não sei o que vai acontecer com ele, o lindo imóvel de esquina que existe desde os anos 1940, que merda de repórter sou (deve sair um prédio estupido como alguns que já há no outro lado da rua), essa alguém vai precisar descobrir.
Mas deixo este punhado de lembranças e sei que há gerações de fregueses que carregam as suas e gostaria muito de ouvi-las. Sei também que duas quadras à frente, na mesma vereda, no ponto equivalente da esquina, ficava a casa de Dalton Trevisan, que também sumiu mais ou menos na mesma época.
Dele, aos quase 100 anos, até se esperava algo assim, mas o que eu não contava é que o fim simbólico dessas duas esquinas deixariam tão vazia a “minha” cidade. Nostalgia é um sentimento conservador que procuro evitar, mas, que diabos, cá, com quase 50 anos, vejo-a entrar de graça no meu peito que é a lona armada do circo dos que não sabem lidar com grandes ausências. Mesmo aquelas em que não deu tempo de se despedir de quem partiu.
Um fato de merda, um texto inesquecível. Ainda bem que ainda temos Sandro Moser.
Puxa vida. Estava ainda com a esperança que reabriria. Que fosse umas férias prolongadas, ou uma reforma interna. E assim vamos, estamos a ficar órfãos desses locais e perdendo as referências. As lembranças ficam… e o Sol levante, não se ergue mais.
Passou um filme na cabeça, valeu Sandro!
Gênio
Pena. Penas em mãos hábeis, não nisso: a beleza da tristeza.
Muito bom ler o texto e ouvir os Johnsons!
Lindo, Sandro!!!
Bebi muitas cervejas . MUITAS LEMBRANÇAS!
Profundamente tocante as palavras do Sandro. Belíssima homenagem a quem tanto lhe deu. Viva o Verdes Mares!
Primoroso, piá! Que texto!
Juro que essa me deixou com saudades da Curitiba que eu deixei de bom grado, sem olhar para trás 💚
Foi onde fiz meu primeiro almoço – entre uma caixa e outra – quando mudei para a região há vinte anos.