Por Sandoval Matheus

A certa altura de “A Gaivota”, peça do russo Anton Tchekhov escrita em 1895 e que permanece uma referência fundamental para o teatro, o personagem Trigorin, intelectual de renome, é questionado pela jovem Nina a respeito do que anda escrevendo. E responde sobre um conto que tem em mente:

Uma rapariga que passou a vida à beira de um lago. Assim, como você. Ela ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre como uma gaivota. Um homem passa, olha para ela, e como não tem mais nada que fazer, a destrói”.

Cia. Áreas Isoladas, de Brasília, vem ao Festival de Curitiba. Foto: Elenor Júnior

E foi talvez por sentir que mesmo hoje muitas gaivotas seguem sendo abatidas em pleno voo por homens de ego incontrolável que a dramaturga e diretora Ada Luana, da Cia. Setor de Áreas Isoladas, de Brasília, resolveu reescrever o clássico de Tchekhov a partir de um ponto de vista “feminino e feminista”.

Na minha versão, as personagens femininas crescem, e em muitos momentos roubam o protagonismo dos homens”, explica Ada Luana. “Também quis tirar a rivalidade de cena e buscar elos de sororidade, irmandade entre as mulheres. O final está diferente: não se pode dizer que as mulheres terminam felizes, mas pelo menos estão livres.”

O resultado da releitura é a montagem “Júpiter e a Gaivota – É impossível viver sem o teatro”, que está na programação da Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba, com sessões nos dias 3 e 4 de abril, às 20h30, no Guairinha. O “Júpiter” do título, de acordo com a autora, faz referência ao poder patriarcal.

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Apaixonada não só pela obra de Tchekhov, mas igualmente por sua biografia, Ada Luana faz questão de registrar que o autor, tido como um dos maiores contistas de todos os tempos, é conhecido pela criação de mulheres fortes, que remavam contra a maré de sua época. Mesmo assim, está longe de poder ser considerado um feminista, ao menos de acordo com os moldes atuais.

O Riso da Medusa

OLhar feminino e feminista sobre Tchekhov. Foto: Elenor Júnior

Por isso, outra modificação digna de nota feita pela dramaturga foi a inserção de monólogos autorais, no início de cada um dos quatro atos. Os textos dialogam com o trabalho de escritoras como a inglesa Virginia Woolf e franco-argelina Hélène Cixous, de “O Riso da Medusa”, ensaio de 1975 que, a partir do mito grego, questiona a hegemonia da escrita masculina no Ocidente.

É claro que pra mim foi desafiador reescrever Tchekhov. Eu tive medo”, confessa Ada Luana, que tempos atrás já havia se embrenhado em outra empreitada semelhante, dessa vez com “As Três Irmãs”, outra peça de Tchekhov. “Para nós mulheres é ainda mais difícil mexer em um clássico, porque a gente escreve a partir de uma tradição totalmente masculina.

As duas produções levaram a Cia. Setor de Áreas Isoladas a se apresentar na Rússia de Vladimir Putin. A estreia de “Júpiter e a Gaivota”, inclusive, aconteceu no Teatro Alexandrinsky, em São Petersburgo, o mesmo em que o próprio Tchekhov fez a primeira encenação da peça original, em 1896, num episódio que ficou conhecido como “o fracasso da Gaivota”. As vaias foram tão sonoras que o fizeram sair às escondidas e confidenciar a um amigo que pensava em nunca mais voltar a escrever para os palcos.

Mais recentemente, a releitura de Ada Luana parece ter incomodado em particular um jornalista que, de acordo com ela, transformou um pedido de entrevista em uma verdadeira sabatina. “Ele queria saber por que eu tinha transformado todos os homens da peça, principalmente o Trigorin, em maus-caracteres. Acho que o Trigorin era o ídolo dele”, brinca. “Ele estava mesmo revoltado. Também me perguntou por que eu precisava usar Tchekhov pra falar de feminismo. Na verdade, tudo o que eu fiz foi colocar uma lente de aumento sobre aquelas relações.”

A montagem ainda enfrentou alguma censura por causa de uma cena de nudez e por conta das vestimentas dos atores, um tanto carnavalescas, logo nas primeiras cenas. A justificativa? A indumentária ia contra uma lei local que proíbe uma suposta “apologia ao transgênero”. Por fim, a tradução precisou utilizar eufemismos para atenuar as repetidas referências aos genitais femininos em um dos monólogos.

Apesar de tudo, tive o retorno de mulheres que pediam pra conversar comigo depois das apresentações”, alega Ada Luana. “E também contei com a ajuda das mulheres que trabalhavam no teatro. Eu via elas agindo como se costuma agir em regimes totalitários, tentando burlar o sistema da forma que podiam. E eu sabia que estavam se arriscando ali”, finaliza.

A Mostra Lucia Camargo do Festival de Curitiba é apresentada por Petrobras, Sanepar, CAIXA e Prefeitura de Curitiba, com patrocínio de CNH Capital – New Holland, EBANX, ClearCorrect – Neodent, Viaje Paraná – Governo do Estado Paraná e Copel – Pura Energia, além do patrocínio especial da Universidade Positivo.

Festival de Curitiba

A 33ª edição do Festival de Curitiba acontece de 24 de março a 6 de abril, reunindo cerca de 350 atrações em mais de 70 espaços de Curitiba e Região Metropolitana. A programação inclui espetáculos teatrais premiados e aclamados pelo público, estreias nacionais e uma ampla diversidade de manifestações artísticas, como dança, circo, humor, música, oficinas, shows, performances e gastronomia.

Acompanhe todas as novidades e informações pelo site do Festival de Curitiba www.festivaldecuritiba.com.br, pelas redes sociais disponíveis no Facebook @fest.curitiba, pelo Instagram @festivaldecuritiba e pelo Twitter @Fest_curitiba.

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