Por Gabriel Costa, especial para o Fringe
No tarot, a Carta da Morte carrega um significado poderoso: não representa o fim literal, mas sim uma transição inevitável — o encerramento de um ciclo para que outro possa nascer. Até os 30 anos, Ney Matogrosso viveu no anonimato. Sonhava em ser ator e trabalhava como figurinista e artesão no Rio de Janeiro. Mas uma alma como a dele jamais conseguiria viver longe de sua natureza selvagem. Ney foi bicho. Um verdadeiro camaleão.
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Homem com H resgata esse lado animalesco e intuitivo do artista com uma ousadia rara nas cinebiografias recentes. O filme é sensível, pulsante e quase ritualístico ao abordar a conexão do artista com a natureza. Enquanto produções premiadas como Bohemian Rhapsody e Elvis falham em capturar a complexidade de seus protagonistas — sufocadas por fórmulas comerciais e cronologias apressadas —, Homem com H respeita tanto o biografado quanto os fãs. Não tenta domesticar Ney para novos públicos. Pelo contrário, o deixa solto e não tem medo de explorar suas questões mais polêmicas.
Ousadia estética
A fotografia de Homem com H aposta em escolhas visuais ousadas e foge das fórmulas dos enlatados que costumam dominar as salas de cinema. Esmir Filho entrega um filme vibrante e por vezes surrealista, especialmente nas muitas cenas de sexo — essenciais para a construção da persona de Ney. A sexualidade no filme está longe de ser apelativa, ela é, acima de tudo, uma forma de afirmação identitária.
Ao longo do filme, são inseridos recortes da vida selvagem: árvores, rios, animais e sons de floresta. Imagens que, à primeira vista, parecem meramente poéticas, mas mais tarde revelam-se como registros do sítio em Saquarema, interior fluminense, que Ney comprou nos anos 1980 e mantém até hoje. A natureza não é cenário, mas sim a parte da personalidade e da alma do personagem biografado.
Mesmo condensando uma vida inteira em pouco mais de duas horas, o filme não soa apressado. Cada cena é uma parte da composição de um retrato íntimo e honesto de Ney. E isso não é por acaso: o próprio artista participou ativamente desta construção, garantindo que o que o público vê na tela seja o mais próximo possível da verdade. “Tudo ali é real”, disse ele.
Jesuíta Barbosa
Dar vida a uma figura tão singular quanto Ney Matogrosso não era tarefa fácil. Nas mãos erradas, o personagem poderia facilmente cair na caricatura. Mas Jesuíta Barbosa entrega uma atuação brilhante. No palco, encarna um Ney animalesco, provocador e destemido. Fora dele, revela um homem introspectivo, espirituoso e surpreendentemente comum. Ao contrário de muitos artistas da sua geração, Ney não caiu no vício em drogas e cuida meticulosamente de seu corpo até hoje.
Embora a narrativa conte com presenças de figuras marcantes do mundo da música como João Ricardo, Cazuza e Gonzaguinha, a obra não se apoia nelas. Esses nomes orbitam a história sem roubar o foco ou soar como “fan service”. Ao contrário, ampliam a jornada pessoal de Ney e ajudam a situá-lo no tempo e no espaço de uma cena cultural efervescente.
As dores de Ney
A relação com o pai é um dos eixos emocionais mais fortes do filme. Quando criança, Ney apanhava. Adolescente, foi expulso de casa porque seu pai não queria “filho viado”. Já adulto, buscou incansavelmente o reconhecimento paterno. A jornada entre os dois é tocante, e Esmir Filho a filma com rara sensibilidade. Quando, enfim, a aprovação chega — “Nosso filho é um grande artista” — é impossível não se emocionar. Em entrevistas, Ney revelou que foi o único dos irmãos a receber um beijo do pai.
Os amores de Ney também ocupam lugar fundamental na narrativa. Muitos deles, infelizmente, foram roubados pela epidemia de HIV nos anos 1980 e 1990, uma dor que Ney carrega até hoje. A culpa por ter sobrevivido enquanto tantos amigos se foram é algo que o atormenta — e é muito bem retratado na obra. “Eu não fazia nada de diferente”, declarou.
Essa culpa silenciosa o dilacera, e Jesuíta Barbosa conduz os sentimentos com rara maestria.
Ney é alguém capaz de renascer em qualquer tipo de adversidade que encontrar. Ele inspira diferentes gerações a não terem medo de se expressar da forma mais autêntica possível, e a equipe de Homem Com H entendeu isso perfeitamente. Um filme hipnotizante e apoteótico em sua essência, assim como o artista. E qual seria o sentido de fazer uma cinebiografia sobre Ney que seguisse os padrões estéticos da indústria? Claro, Homem Com H não é revolucionário, mas foge da normalidade. Esmir Filho captura o “sangue latino” e mostra que, realmente, ninguém tira a carta da morte no tarot 3 vezes à toa.