Morreu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos, a arqueóloga brasileira Niède Guidon. A informação foi confirmada por Marian Rodrigues, diretora do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato. “Partiu como um passarinho, tranquila”, afirmou a diretora.
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A causa da morte ainda não foi divulgada pela equipe médica. Com uma trajetória marcada por descobertas decisivas, Niède mudou o entendimento da arqueologia sobre o povoamento das Américas. Formada em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora pela Universidade de Paris, desafiou as teorias vigentes ao encontrar vestígios humanos no Piauí com até 60 mil anos, podendo chegar, segundo suas pesquisas, a 105 mil anos.
As descobertas de Niède confrontaram diretamente a teoria de Clóvis, que defendia a ocupação das Américas há cerca de 13 mil anos, pelo estreito de Bering. Mesmo diante de resistência da comunidade científica, inclusive dentro do Brasil, Guidon manteve a defesa de suas pesquisas com firmeza.
Walter Neves, um dos mais respeitados arqueólogos brasileiros, admitiu anos depois estar “99,9% convencido” da consistência das descobertas de Niède. Para ele, “a felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niède Guidon”.
Em 1963, ainda trabalhando no Museu Paulista da USP, Niède ouviu falar das pinturas rupestres no interior do Piauí. Tentou chegar ao local dirigindo um Fusca, mas as dificuldades de acesso impediram a viagem. Em 1964, mudou-se para a França, fugindo da ditadura militar, e só sete anos depois conseguiu, enfim, conhecer a região que marcaria sua vida.
O que encontrou foi um acervo arqueológico inédito. Com apoio do governo francês, organizou uma missão de pesquisa em 1973, iniciando um trabalho contínuo que uniu pesquisadores franceses e brasileiros na investigação do território.
Em 1979, foi criado o Parque Nacional Serra da Capivara, hoje Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco. Niède também fundou a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), responsável pela pesquisa e preservação do parque.
Ao longo da vida, defendeu a importância da preservação da Serra da Capivara e lutou contra o isolamento da região. Mobilizou recursos públicos e privados, criou projetos sociais com as comunidades locais e enfrentou adversidades políticas e financeiras. Chegou a utilizar recursos pessoais para manter o parque funcionando diante de cortes orçamentários.
Niède catalogou 1.354 sítios arqueológicos na Serra da Capivara, dos quais 200 são abertos à visitação. Sua atuação também foi marcada por críticas à lentidão do poder público, à falta de infraestrutura turística e ao abandono de políticas de preservação ambiental.
O impacto social da criação do parque também gerou polêmicas. Comunidades inteiras precisaram ser reassentadas com a desapropriação de terras, processo conduzido pelo governo federal, mas que a tornou alvo de críticas entre parte da população local.
Em sua trajetória acadêmica, Niède nunca deixou que o gênero fosse um obstáculo. Costumava afirmar que jamais se sentiu em desvantagem como mulher na condução de seu trabalho. Recebeu títulos e homenagens, como o de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Piauí, além de ser membro da Academia Brasileira de Ciências e Grande Oficial da Ordem Nacional do Mérito Científico.
Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, Niède Guidon era neta de franceses. Não se casou, não teve filhos e dedicou sua vida à arqueologia e à preservação da Serra da Capivara, deixando um legado que ultrapassa as fronteiras da ciência brasileira.